Que las hay, las hay: bruxas vivas.

A caça às bruxas, pelo cristianismo, reforçou a presença delas: a própria Igreja garantia sua verdade, porque as identificava, julgava e condenava. O livro Malleus maleficarum (O martelo das bruxas), publicado no final do século XV por dominicanos, afirmava que não acreditar na obra das bruxas era máxima heresia. 


Luis Ricardo Falero - Partida para o sabá - 1878


Existem muito mais bruxas do que bruxos no Ocidente a partir da Idade Média. A mulher concentra os pecados e as maldades; foi Eva quem, a primeira, entrou em parceria com o demônio. Suas descendentes continuaram mantendo a sintonia diabólica. Julio Carlos Baroja, em seu livro Las brujas y su mundo, propõe uma distinção entre bruxa e feiticeira: a primeira seria de âmbito rural, a segunda, urbano. 


A série de televisão Bewitched - A feiticeira - dos anos de 1960



As duas palavras também têm peso diverso. Se bruxa evoca velhice e feiura, feiticeira pode significar mulher muito atraente: fiquei enfeitiçado por ela, costuma-se dizer.


Antoine Wiertz - A feiticeira - 1857

Mas não creio que valha a pena entrar em sutilezas desse tipo. 

Jules Michelet, o imenso historiador francês publicou, em 1862, um livro intitulado A feiticeira. O título poderia ser também A bruxa, porque, para as duas palavras, os franceses só têm uma: sorcière, que denomina o livro. Nele, Michelet conta a história de uma feiticeira imaginária, vítima das opressões sobre as classes populares, das quais ela é uma espécie de liberadora. Ela é temida, porque sabe os segredos da natureza, é livre, e potencialmente subversiva. Seu aliado, o demônio, é um apóstolo da liberdade (como outros românticos, sobretudo Victor Hugo, também o considerava). Há algo de pré-psicanalítico na análise de Michelet: em seu assédio, a Igreja revela mais a repressão de suas próprias pulsões, do que os malefícios das magas.

Francisco Goya Não houve remédio - 1799


"A extraordinária persistência dessas formas rituais e dessas imagens mágicas nas mais diversas épocas e países pressupõe uma continuidade dos ritos  desde as eras pré-históricas", espanta-se René Alleau, historiador das ciências ocultas. Tem razão. É simples constatar como os atos de feitiçaria mantém seus princípios constantes através dos tempos. Ou, nas palavras do sociólogo Bernard Valade: "Fato de civilização (...) a bruxaria é a implementação de crenças, técnicas e artes mágicas, cuja baixa plasticidade e reprodução inalterada por séculos atestam a permanência de certas modalidades de funcionamento da mente humana. Européia ou exótica, permite ser analisada, a partir de situações razoavelmente bem típicas e facilmente indexadas, em termos que permitem sua identificação, tanto no nível de suas implicações sociais quanto nas de suas manifestações mentais, com um sistema em que os silêncios e os feitiços, a fala e o poder, a força e a morte mantém relações estreitas."
Norman Linsay - A feiticeira


Em seu filme A mata negra, de 2018, o diretor capixaba Rodrigo Aragão foi capaz de criar um universo de bruxarias. José Mojica Marins, o Zé do Caixão é a matriz deste terror brasileiro. Aragão é mais sofisticado no seu modo de filmar e de iluminar, nas maquiagens e máscaras do que o velho mestre. Mas, como ele, parte da cultura popular em suas concepções do sobrenatural.

Outro ponto em comum é a escalada sem vergonha na ênfase do horror sanguinolento, atingindo por vezes o ridículo, se o percebermos com olhos sofisticados. Mas não se entramos no jogo da hipérbole popular.

Tem também algo de tosco, sobretudo na direção de atores. Se ela funciona muito bem nas cenas paroxísticas, quando se trata de uma conversa "normal", nada convence. Fazem pensar em atores de filmes pornô, tão elementar são as interpretações.






Além disso, o roteiro despreza qualquer detalhe de verossimilhança. Ele avança por pequenos episódios, em número muito grande, com personagens que desaparecem ou reaparecem. Esses episódios oferecem a impressão de que, cada um por si só, poderia ser desenvolvido como um filme autônomo. 

A narração é parecida com as dos contos populares, ou dos romances picarescos, que derivam deles. Quando pensamos que alguma coisa se afirma e vai se desenvolver, ela é abortada. Pode reaparecer mais tarde, mas tão transformada, que a continuidade é mais entendida do que sentida. As regras das ligações mantidas com o sobrenatural vão se acumulando, como num catálogo. As formas rituais que persistem desde sempre na história humana surgem com enorme variedade de manifestações.



Um de seus vagos fios condutores é o Livro de São Cipriano, muito presente na cultura popular brasileira. Mas nem ele permite que se possa resumir a trama do filme a uma síntese, ou num esquema.

Essa multiplicação de situações surpreende, e confere à A mata negra um de seus aspectos mais originais. Outro, é que Clara, a heroína, e o núcleo de todas as histórias, lida com o sobrenatural com fatalismo e certa naturalidade. Não pertence nem ao bem, nem ao mal - ao contrário dos neo pentecostais que surgem como perseguidores ávidos e sem escrúpulos.




O que me capturou, sem cessar, durante a visão do filme, foi a beleza gótica, poética das cenas. O resultado mais sedutor do que assustador.


Rodrigo Aragão também é exímio em recriar ambientes populares, que soam verdadeiros, como na excelente sequência do puteiro. É verdade que há uma reprodução de Gauguin no fundo, mas por que não?



Desrespeitando as convenções do gênero e dos roteiros, A mata negra escapa da banalidade comum aos filmes brasileiros correntes. Consegue criar um universo original, construído com cinematografia própria. 

Comentários