"Jardim fechado você é, minha irmã, esposa; jardim fechado, fonte sigilada"


É comum se ler, em manuais, que Jan Provoost foi um continuador da grande tradição pictórica dos Países Baixos, inaugurada em modo imperativo por van Eyck. É uma verdade incontestável, que tem, no entanto, o defeito de transformar Provoost num epígono.

A obra acima, da National Gallery de Londres, datada do primeiro quarto do século XVI, é sempre vista (desde os contemporâneos de Provoost) como descendente da Virgem do cônego van der Paele, que van Eyck pintou entre 1434 e 1436.



A pose de ambas é semelhante, e basta atentar para o detalhe da mão que segura o ramalhete para que essa sugestão se estabeleça. 




A poesia dos dedos se simplifica no quadro de Provoost, cuja Virgem tem mão mais jovem. Mas as semelhanças são suficientes para percebermos a que linhagem Provoost pertence.

No entanto, a originalidade de sua obra também é evidente.

Primeiro, do ponto de vista iconográfico. Van Eyck pinta suas Virgens em palácios suntuosos. Provoost a situa num jardim.

A tradição do hortus conclusus foi importante na cultura do gótico internacional, desde o século XIV. Essa iconografia associava Maria ao jardim fechado, metáfora do paraíso e da pureza. A inspiração veio do Cântico dos cânticos: « Hortus conclusus soror mea, sponsa ; hortus conclusus, fons signatus » "Jardim fechado você é, minha irmã, esposa; jardim fechado, fonte sigilada".


Stefano da Verona ou Michelino da Besozzo - Madona no jardim de rosas e Santa Catarina de Alexandria  - 1435 circa

Nessa iconografia, a Virgem é representada como "de humildade", ou seja, sentada no chão e não num trono - inspiração franciscana que valoriza o despojamento, embora os trajes sejam sempre suntuosos, em gosto cortesão.

Algumas representações sentaram Maria em um murinho, formando uma imagem intermediária entre a Virgem de humildade e a Virgem no trono.


Martin Schongauer - Madona de humildade - 1473 circa

Outros artistas retomaram o mesmo modelo, como Aert van den Bossche, que trabalhou e morreu em Bruges, a mesma cidade de Provoost. Ele insere o simbolismo do Paraíso (o pavão, os cervos tranquilos) numa suave paisagem doméstica.

Aert van den Bossche - Virgem com o menino - anos de 1490

Provoost desenvolve esse princípio. Sua Virgem está sentada sobre um banco que o manto recobre inteiramente, formando base monumental.  No fundo, uma estupenda paisagem. A lembrança do hortus conclusus está na pequena cerca logo atrás do banco, mas a madona se integra na atmosfera e com isso ao resto do mundo. Como se, graças a ela, o hortus conclusos tivesse se transformado no mundo inteiro.




A união entre a Virgem e o mundo se torna hipostática se observarmos a estratégia pela qual o pintor concebeu a auréola sagrada como uma aurora, ao situá-la na altura do horizonte. A aurora vem, simbolicamente ligada à infância de Cristo e ao surgimento de uma nova era. A Virgem se torna um sol, mais divino do que ele, com luz própria, mesmo quando ele se vai.




Se observarmos as sombras dos camponeses que trabalham, percebemos que a luz vem da esquerda, ou seja, do oeste, de um sol que está se pondo. Momento de transição luminosa, como queria da Vinci. A aurora nos diz que a Virgem mantém a luz ainda quando a escuridão se anuncia.



Os venezianos, no mesmo momento em que Provoost executava sua Virgem, retomavam com insistência o mesmo da Virgem em meio à natureza. A solução corrente que empregam, porém, é de destacá-la diante de um dossel de tecido, como se ela estivesse em um palácio. Este modelo sugere uma senhora, uma deusa, da natureza.

Giovanni Bellini - Madona - 1510

O próprio Provoost empregou esse princípio, numa pintura poético, de composição tão balanceada e de ideias tão delicadas. É A madona da fonte, cuja cerca de flores brancas assinala o hostus conclusus. Está no museu de Piacenza.





Como outros pintores, Giorgione associa a Virgem de Humildade à paisagem ampla. Seu mundo, porém, é muito diferente do proposto por Provoost, e seu hortus conclusus dilatado é um universo altamente dramática. Montanhas cavernosas, erodidas, revoltas, árvores agitadas.

Giorgione não oferece equilíbrio estável porque evita a frontalidade dos personagens. A Virgem, de olhar melancólico, medita sobre o destino trágico do filho. Seu gesto de segurar a cabeça do menino como se ele estivesse sofrendo, a expressão nada feliz do bebê, completam a inquietação da existência humana.

Giorgione - Virgem e Menino em paisagem de montanha - 1477/78

Além de pontos iconográficos que Provoost vai buscar nas tradições para reelaborá-los, sua pintura possui qualidades pictóricas fora do comum, mesmo comparando-a com a dos grandes gênios de seu tempo.

Uma delas é o tratamento luminoso. Ele embebe a atmosfera de luz tranquila. A importância da atmosfera e do ar são sublinhados pelo pintor num detalhe delicioso. O menino Jesus brinca, puxando o fio de um catavento que deve girar como um helicóptero nos ares. 




Entre os aspectos excepcionais de fatura, a Virgem de Provoost apresenta um modelado finíssimo. 



Ao empregar tons azulados nas sombras que se completam em tons cor de rosa, ele cria um modelado claro e "frio", que pode fazer pensar naqueles que empregavam os maneiristas italianos, mas em chave de mais meditada sutileza.


Domenico Beccafumi - Virgem com o menino (detalhe) - 1542 circa


Por total incompetência, nem me atrevo a aproximar do debate sobre a atribuição da Virgem de Londres. Confio na National Gallery, que afirma sem hesitar a autoria de Jan Provoost.

Enfim, há em Londres, também na National Gallery, uma notável pintura, cuja autoria vem sendo debatida desde o século XIX: círculo de Dürer? Ateliê de Dürer? Imitador de Dürer? É uma obra de grandes proporções (1,49 x 1,17), talvez uma pala d'altare, de impacto suficiente para ser copiada. pelo menos duas vezes. Essas versões antigas estão, uma em Praga, outra em Wilhering, na Áustria. Foi pintada por voltas de 1508, é por vezes chamada de Madona das íris.

(Albrecht Dürer conhecia e admirava Provoost. Escreveu em seu diário que se tratava de "um bom pintor". Anotou: "Quando cheguei em Bruges, Jan Prost acolheu-me em sua casa e preparou nessa mesma noite um jantar caro e fez muita questão da minha companhia". Essa passagem assinala o altíssimo prestígio que Dürer gozava em vida, e a importância de Provoost. Dürer fez dois retratos de Provoost, um com carvão, outro com ponta de prata (que ofereceu à esposa de Provoost quando partiu).

Seja como for, a Madona das Iris é obra de qualidade vertiginosa. 




O pintor empregou uma superposição intensa de vermelhos diferentes no vestido e no manto, cuja violência sobressai porque disposta sobre um fundo verde. Uma grande dama, uma rainha, vestida com a cor da paixão, amamenta seu filho, tranquila e segura, com os olhos semicerrados, enquanto o espírito de Deus vigia e protege do alto, numa nuvem.

A cerca do hortus conclusus é formada por ruínas - metáfora frequente na pintura do renascimento para significar o fim da antiguidade pagã. E a Virgem está sentada ao lado de uma armação que sustenta uma vinha: símbolo do sangue de Cristo que afirma uma nova era.


Paisagem depurada, abstrata, no recorte do arco, mostrando o horizonte marinho e luz transfigurada em reflexos e transparências.






Comentários

  1. Que lindo texto! Uma sutileza na observação e olhar curioso envolvente! Sou um leitor do blog e espero mais e mais.
    Obrigado!

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  2. Muito obrigado, Bruno! Fico feliz com seu comentário.

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  3. Professor, como sempre, seu olhar acurado guia os nossos para uma mais completa absorção destas obras. Aqui o silêncio é envolvente. Obrigada.

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    1. Muito obrigado, Suzette, por vc ter gostado do meu texto.

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