Mistério (quase) desfeito



No dia 15 de março passado publiquei um post a partir do livro sobre as Academias, escrito por Pevsner. O título foi: A Academia, a Arte e um enigma.

O enigma do título veio de uma pintura de Antoon (ou Anthuenis) Claeissens, ou Claessens, ou Claeissins (a grafia do seu nome varia nos documentos originais).


Para tornar mais cômoda a compreensão, transcrevo o trecho do post referente ao quadro. Aqui vai:


"Uma passagem de Pevsner me ajuda a compreender a significação de um quadro cuja iconografia mais detalhada, ao meu conhecimento, não foi ainda decifrada.


Antoon Claeissens - Marte vencendo a ignorância - 1605 - Groeninge Museum, Bruges



Não é difícil perceber, porém, na tela Marte vencendo a ignorância, de Antoon Cleissens, que nela figuram sete figuras femininas claramente identificáveis com as Artes liberes, artes liberais (ou seja, dignas de um homem livre): o trivium e o quadrivium da antiguidade clássica. Elas reuniam as nobres disciplinas do espírito, ao contrário das Artes mechanicae, manuais, servis, e vulgares. A Retórica e a Gramática são tradicionalmente representadas com um livro na mão. A Dialética aparece no fundo, acompanhada por uma coruja, o símbolo da filosofia. Com o caduceu de Mercúrio na mão, assinalando seu vínculo com o comércio, surge a Aritmética, contando nos dedos. Ao lado dela, tendo a esfera armilar na mão, a Astronomia. Com um compasso sobre o globo terrestre e um esquadro aos pés, a Geometria. Enfim, em primeiríssimo plano, a música.

Há, porém, uma oitava figura feminina, vindo da direita e conduzida por um barbudo. Ela trás nas mãos a paleta e o bastão de apoio e medida do pintor. Ao contrário das outras, caminha com energia, e seu gesto é amplo.

Quem é o homem? A mulher, não há dúvida, é a pintura.

Ao tratar das academias nos Países Baixos, Pevsner assinala o papel essencial de Karel van Mander, escritor e pintor, no início do século 17. Mander publicou, em 1604, sua obra capital, O livro dos pintores, em seis volumes, inspirado em Vasari, e fonte capital para a história da pintura holandesa.


Página de rosto da primeira edição de O livro dos pintores, de Karel van Mander
.

O primeiro volume se intitula, significativamente, "Princípios da arte muito nobre da pintura". Pevsner cita o seguinte trecho:


"O Pictura, entre todas a arte mais nobre e mais esclarecida, mãe de todo ornamento, ama das artes mais nobres e mais honrosas, igual às suas irmãs que se chamam as Artes liberais. Tu foste a tal ponto apreciada pelos nobres Gregos e Romanos que eles acolhiam de todo coração, de onde viessem, teus artistas, e que os dirigentes e magistrados lhes concediam a cidadania. Oh séculos ingratos em que vivemos, nos quais, sob a pressão de borra-tintas incapazes, tantas leis infames, tantos regulamentos acanhados foram introduzidos em quase todas as cidades (exceto Roma), a nobre arte da pintura se transformou em corporação [...] Oh nobre arte de pintar [...] como fazem pouca diferença entre teus nobres servidores e aqueles que têm apenas um fraco luzir do que é a arte"


Pevsner prossegue:


"As reivindicações são as mesmas do que aquelas que se podiam ouvir na Itália desde Leonardo: a pintura deve ser considerada como Ars Liberalis, o artista era um cidadão honrado na antiguidade, é denigração falar de ofício manual. É interessante notar com que força Mander assinala a exceção romana. Ele faz certamente referência à Accademia di S. Luca, cuja ideia já havia sido lançada quando ele deixou a Itália em 1577, mesmo se não existia ainda".


De qualquer forma, seria impossível que Mander não soubesse da fundação da Accademia di S. Luca, por Zuccari, em 1593. O lema dessa academia, Aequa Potestas significa igualdade de poder entre pintores e poetas.








Emblema da Accademia di San Luca, em Roma. A expressão latina Aequa Potestas quer dizer "O mesmo poder". Ela vem de um verso de Horácio - Pictoribus atque poetis/Quidlibet audendi semper fuit aequa potestas - "Os pintores e os poetas sempre tiveram o mesmo poder de ousar o que quisessem"




Entre o livro de Mander, que é de 1604, e o quadro de Claeissens, que é de 1605, a ligação é tão próxima que a pintura quase surge como uma ilustração do texto.


As interpretações iconográficas que descobri limitam-se a sugerir que Marte está vencendo a ignorância, que seria o Protestantismo.¹


A interpretação do grupo central, na verdade, é enigmática por mais de uma razão. 


Primeiro, não sei de outra obra em que Marte esteja ligado ao florescimento das artes, papel que é sempre reservado ou a Apolo, ou a Vênus, porque é na paz que o saber e as musas desabrocham. Para arriscar uma interpretação, percebo que a pintura tem uma couraça de guerra. Não é difícil imaginar que os artistas e teóricos concebam o confronto entre pintor livre, e pintor obediente às corporações, como uma guerra. 


Segundo, o personagem que é derrubado por Marte tem enormes orelhas de burro, como Midas, que não sabia julgar a música de Apolo, ou seja, um ser tapado para as artes. Marte segura uma faixa de couro nas mãos, como se estivesse amarrando e neutralizando a burrice.


Tudo isso não parece muito coerente com uma interpretação religiosa.


Resta o homem barbudo que conduz a pintura. Seria ótimo se fosse o retrato de Mander. Infelizmente, não corresponde em nada à fisionomia do teórico, que também era pintor."




Esse quadro que, se minha interpretação iconográfica estivessem corretas, seria muito expressivo na história da luta que os artistas tiveram para integrar as Artes Liberalis, permanecia, porém, com poucas informações accessíveis.

Descobri que havia um catálogo de exposição sobre a pintura de Bruges no renascimento, datado de 1998. Ali, de certo haveria alguma coisa sobre Claeissens.

Antes, é preciso dizer que a pintura de Bruges nesse período nunca foi muito considerada pelos historiadores da arte e, em consequência, pouco estudada. Tirando alguns nomes mais relevantes, como Memling (que a maioria dos especialistas prefere inserir como o último representante do período genial do século XV, e não como o primeiro dos renascentes), ou Bouts, ou Pourbus, o resto permanece numa penumbra um pouco preconceituosa.

Esse catálogo poderia se revelar precioso, portanto. Descobri um exemplar num sebo holandês. Estávamos no apogeu da pandemia na Europa, e o proprietário não queria enviá-lo para o Brasil. Mas podia mandar para a Europa, por meio de portador especial.

Felizmente, meu amigo e orientando Felipe Corrêa estava (está) em Paris, pesquisando para sua tese sobre Nattier. Gentilmente aceitou receber o catálogo e me reencaminhar.


Nesse catálogo, havia apenas a presença de um único quadro de Claeissens - que não é o de Marte - e uma ficha biográfica.

A autora da ficha é Eva Tahon, curadora do Gruuthusemuseum em Bruges. Encontrei seu e-mail e lhe escrevi nestes termos:

"Prezada Senhora
Permita-me apresentar-me.
Sou professor titular de história da arte na Universidade Estadual de Campinas, Brasil.
Minha especialização é na história da arte do século XIX e nunca trabalhei sobre a pintura de Bruges no Renascimento.
Mas ouso enviar-lhe esta mensagem, sobre uma interpretação iconográfica de uma pintura de Antoon Claeissens (em anexo).
Procurei na bibliografia deste artista e não encontrei muita coisa.
Descobri seu nome como autor da biografia de Claeissens no catálogo "Bruges e o Renascimento" (1998).
Eu ficaria muito feliz em receber qualquer resposta a esse respeito.
Muito cordialmente
Prof. Dr. Jorge Coli"

Dias depois, recebi a mais amável das respostas:

"Prezado Senhor,

Muito obrigado pelo seu e-mail.

Acontece que houve uma nova visão sobre essa pintura, desde a exposição Pieter Pourbus e os mestres esquecidos, aqui em Bruges em 2017-2018 (Forgotten Masters. Pieter Pourbus e Bruges Painting de 1525 a 1625. [Ex. Cat. Groeningemuseum , Bruges, 13 de outubro de 2017 - 21 de janeiro de 2018, Ghent: Snoeck, 2017. 352 pp. ISBN 978-94-6161-415-5.)
Nesse catálogo, escrevi a entrada para esta pintura. Estou enviando meu texto original em holandês.

A identificação das figuras femininas é um pouco diferente que Pevsner e o senhor escrevem.

No momento, não tenho acesso ao catálogo impresso, devido a restrições de coroa no uso de nossa biblioteca.

Revi meu texto em holandês e há as conclusões mais importantes:

As figuras femininas representam Gramática, Geografia, Astronomia, Retórica (com caduceu), Dialética, Musica, Aritmética e Pintura.

Eu apoio a sua conclusão ou sugestão de que esta é uma pintura para promover a Guilda dos Pintores nas Artes Liberais, e que Karel Van Mander tinha muito a ver com isso ser uma questão ardente na época. O cenário é muito brugiano, os pináculos mais emblemáticos da igreja de Bruges estão claramente na pintura;

Alguns exemplos anteriores dessa empresa são encontrados em gravuras de Cornelis Cort, Maarten De vos, Frans Floris e Lucas d'Heere, com uma iconografia semelhante (quase perdida).

Tentei identificar os assistentes de Marte e as figuras do soldado e sugeri que eles fossem o chefe da Guilda dos Pintores de Bruges (que permanece desconhecida, pois não possuímos a lista completa dos membros do conselho nesse período), ou talvez ser mais universal, ou possivelmente as vozes mais altas do quadro da guilda de Antuérpia, e protagonistas de Frans Floris, Lucas d'Heere ou Cornelis Cort, cuja série impressa inspirou a pintura e cujas características se assemelham ao homem que introduz a pintura no círculo. de personificações de artes liberais.

Espero que isso lhe ajude em sua pesquisa adicional. E não hesite em entrar em contato conosco novamente, caso tenha mais alguma dúvida sobre esta ou outras pinturas de Bruges.

Atenciosamente

Eva"



O artigo que ela me enviou, em holandês, foi muito amavelmente traduzido por Felipe Martinez, que defendeu recentemente uma tese sobre van Gogh sob minha orientação, e para quem essa língua não tem segredos.

Aqui vai:

Antonius Claeissens
Gato. 61
Marte, rodeado pelas Artes Liberais e Pintura, triunfante sobre a Ignorância
1605
Óleo sobre tela, 197,5 × 280 cm (sem moldura)
Bruges, Groeningemuseum, 0000.GRO0680.I
Inscrições: "ANTONIUS CLAEISSINS FECIT 1605" (no canto inferior esquerdo de pedra); "PERU OCEANUS AFRICA" (no mundo); "BASSUS BASSUS" e notas musicais (na partitura).


O deus da guerra romano, Marte, está sobre a ignorância, um homem nu com orelhas de burro e com as mãos amarradas. Em torno dele estão as sete Artes Liberais e a Pintura, mostradas como mulheres vestidas com roupas históricas[1]. A deusa da vitória, Vitória, como um anjo, com um ramo de palmeira nas mãos segura uma coroa de louros sobre a cabeça de Marte. No plano de fundo, pode-se ver o panorama da cidade de Bruges a partir do Minnewater. A paisagem montanhosa com casas no último plano à esquerda é fictícia.
À esquerda é mostrada a Gramática, escrevendo em um livro e com uma chave na mão[2], a Geografia com um globo terrestre, uma bússola e um esquadro, a Astronomia com uma esfera celeste, a Retórica com o caduceu – o cetro com cobras e duas asas[3] – e uma chave, e atrás está a Dialética com um papagaio sobre a mão. No lado direito de Marte, a Música toca uma charamela, enquanto um alaúde, um trompete  e um chifre estão a seus pés. Atrás, a Aritimética escreve sobre uma tábua[4]  e na extrema direita, uma orgulhosa Pintura segura paleta e pincéis em suas mãos[5]. Ao seu lado está um soldado com elmo que a defende e a conduz ao grupo das Artes Liberais.
Essa iconografia é muito incomum. Normalmente, Marte é mostrado como um deus da guerra e, como tal, destruidor da Arte e da Ciência, enquanto Minerva as protege.
Normalmente é Minerva quem luta contra a ignorância e introduz a Pintura. Mas aqui Marte é o protagonista, um deus da guerra que combate e restringe ativamente a ignorância. Assim, ele cria a oportunidade de introduzir a Pintura a uma nova e mais alta posição na sociedade, livre das amarras de uma guilda de pintores organizada e corporativista. No século XVI, os pintores ansiavam pelo reconhecimento de seu ofício entre as artes liberais[6].
A competição entre as práticas de artesão e a arte cresceu também em Bruges. A vista da cidade no plano de fundo indica que a questão da emancipação pode ser situada em um contexto específico de Bruges. De qualquer modo, não há razão para acreditar que essa pintura tenha sido feita mediante encomenda da cidade. Claeissens era, naquele momento, o pintor da cidade já há algum tempo, e um primeiro relato da presença dessa obra na prefeitura da cidade data do século XIX.
Há pouco material de comparação que permita uma conclusão sobre o soldado ou Marte, ambos com um elmo em perspectiva incorreta na cabeça, de modo a identifica-los com figuras contemporâneas. É possível que Marte e o soldado tenham sido retratados a partir de membros da guilda de Bruges. Mas não se sabe quem eram o mestre ou bedel em 1605[7]. Antonius Claesseins era o chefe da guilda de pintores em 1601-02. Ao longo da vida, Antonius talvez tenha mantido contato sobre desenvolvimentos artísticos com Frans i Pourbus - um colega contemporâneo emigrado da Antuérpia. Assim, Marte vitorioso pode ser um campeão da incorporação da Pintura nas Artes Liberais de Ghent ou da Antuérpia, como Frans Floris, Lucas d’Heere[8] ou o gravador Cornelis Cort[9].



[1] De Vos, 1979, 115-117, notou ainda as Artes à direita e as Ciências à esquerda. Já publiquei breves correções, sem argumentar a respeito da ascensão da Pintura nas notas biográficas de Antonius Claeissens em Bruges 1998, I, 230.
[2] De Vos, 1979, 115, identifica essa mulher com a História. Modenmann, 2014, 6, a identifica com a Gramática.
[3] De Vos, 1979, 115, vê o cetro como o cetro de esculápio e portanto identifica a mulher com a Medicina. Modenmann, 2014, 6, vê o cetro como um caduceu, que compõe a personificação da Retórica.
[4] De Vos, 1979, 115, nomeia essa mulher como Poesia. Modenmann, 2014, 6, a identifica com a Aritimética.
[5] Uma representação similar de mulheres com esses atributos pode ser encontrada na série Sete Artes Liberais gravada por Cornelis Cort a partir de uma série perdida de pinturas de Frans Floris, ver New Hollstein, 2000, 197-203. Ambos Frans Floris (ca. 1560, Ponce, Museo de Arte) e seu pupilo Lucas d’Heere (terceiro quartil do século XVI, Turin, Galeria Sabauda) preservaram obras de grande escala em “O despertar das Artes Liberais”. Maarten de Vos também encontra uma iconografia semelhante por volta de 1590 (leilão Sotheby’s, Londres, 7 de julho de 2004).
[6] De Vos, 1979, 116, identifica o soldado também como Marte, o que é no mínimo estranho de um ponto de vista compositivo. Os dois homens tem barba, armadura e elmo, mas dificilemente podem ser considerados a mesma figura. 
[7] Van den Haute, 1913, 228. A renovação da lei não foi mantida para o período 1602-1606.
[8] Lucas d’Heere (1534-1584), discípulo de Frans Florins (1519/20-1570) defende a Pintura para a Antwerpse Rederijkerskamer de Drie Violieren met Den Hof en Boomgaerd de Poësien. Para retratos gravados de Cornelis Cort (1533 -1578), ver New Hollstein 2000, R43, especialmente 250. Também importante é talvez a primeira edição de Karel van Manders Schilder-boek em 1604. Inspirado nas Vidas de Vasaride 1568, ele faz um panorama dos mais importantes precedessores contemporâneos italiaos, holandeses/flamengos, precedido por considerações gerais em conexão com a profissão de pintura. Fazendo isso, ele enfatiza a importância do conhecimento da história e da simbologia para o pintor iniciante depois da perspectiva e a habilidade técnica. É precisamente esse raciocínio que coloca a arte acima do artesanato.
[9] Cornelis Cort, de quem o retrato gravado é um pouco semelhante ao Marte central dessa pintura. “Para retratos gravados de Cornelis Cort (1533-1578), ver New Hollstein, 2000, R43, especialmente 250.

Eu não podia deixar de responder a uma mensagem tão atenciosa, e que havia me deixado feliz.

Aqui vai a resposta:

"Cara Eva Tahon

Sou-lhe muito grato por sua resposta atenciosa.

Meu interesse pela pintura de Claeissens é paralelo à minha pesquisa sobre o século XIX. Trabalho com alegoria e simbologia nesse período, especialmente no que se refere à liberdade. (Se por acaso estiver interessada, tenho um livro publicado em francês sobre o assunto, Le corps de la Liberté - Ellug ed.)

A pintura de Claessens está na minha cabeça há muito tempo². Eu nunca tinha visto uma alegoria tão clara sobre a luta dos pintores pelo status de artistas, em seus apelos para a pintura se tornar uma arte suplementar no conjunto das Ars Liberalis.

Ao reler o livro de Pevsner, sua citação de Karel van Mander me lembrou Claeissens. A proximidade entre as datas do livro e da pintura também me pareceu expressiva. Minhas interpretações dos atributos das figuras das artes eram empíricas e aproximativas, mas o que conta, parece-me, é a proposta da arte da pintura como nova arte liberal (e a ideia de lutar, invocar o deus Marte e vestir a pintura como uma guerreira).

Desse modo, fico feliz por não ter me enganado muito, e por seu artigo  confirmar minhas hipóteses.
Muito grato por sua atenção, e esperando, quem sabe, conhecê-la pessoalmente no futuro, envio meus melhores sentimentos.

Jorge Coli"



NOTAS

¹ A interpretação religiosa do quadro está na ficha catalográfica da WGA: "Antoon Claeissens painted this allegory in 1605, probably for the Town Hall in Bruges. Its principal meaning can be deciphered easily, but it probably also contained a further political significance which has yet to be found. The painting is entitled Mars, surrounded by the Liberal Arts, vanquishing Ignorance. Ignorance may have stood here for Protestantism."
² Tenho que agradecer a meu amigo Lucio Schoenmann do Nascimento, que me chamou a atenção pela primeira vez sobre esse quadro.

Comentários