Ver e ouvir

As associações entre imagens e sons que fazemos instintivamente são instrumentos para compreender as obras. A Quinta sinfonia de Beethoven não nos faz pensar em borboletas e o Juízo final  de Michelangelo dificilmente nos lembraria o Tico-tico no fubá.


Odilon Redon, - A esfinge vermelha - 1912 circa

Um leitor deste blog, que é inteligente e meu xará (não que uma coisa tenha a ver com a outra), Marcelo Jorge, me pede para escrever alguma coisa sobre uma passagem do livro de Etienne-Jean Delécluze, Louis David, sua escola e seu tempo.

Jean-Dominique Ingres - Retrato de Etienne-Jean Delécluze - Fogg Art Museum


Delécluse foi aluno de David. Era um ótimo discípulo, mas abandonou a pintura pelo jornalismo, como crítico de arte. Seu livro é uma fonte essencial para o estudo e compreensão do neoclassicismo. Infelizmente, não foi vertido para o português.

Aqui vai a passagem - que é espeto - tal como eu a traduzi:

[David pergunta] "a um outro de seus alunos que gostava de música.

- Então, Georges, você continua cantando a música de Gluck?

- Sim senhor, respondeu o aluno num tom gracioso e deliberado.

- Muito bem, você tem razão, porque você gosta dela... Eu prefiro a música italiana. Atenção ao braço e à cabeça de sua figura, que são grandes demais e mal desenhados... você tem o sentimento da cor, certo, de acordo... Oh! Ele é colorista, mas Ticiano e Paolo Veronese coloriam bem, mas desenhavam as cabeças e os braços melhor do que você. Eis o que é gostar da música alemã, você prefere a harmonia à melodia e faz a mesma coisa em pintura: você passa a cor na frente do desenho. Pois bem, meu caro amigo, isso é pôr o arado antes dos bois. Mas tanto faz, faça como você sente, copie como você vê, estude como você entender, porque um pintor é reconhecido como tal pela grande qualidade que ele possui, qual quer que seja. É melhor fazer boas “bamboccie” como Teniers ou van Ostade do que quadros de história como Lairesse e Philippe de Champagne.”

Lanço aqui algumas idéias, sem me aprofundar muito.

Primeiro, este texto pressupõe dois debates estéticos intensos e célebres. 

Uma foi mais ou menos contemporânea do episódio.  Era a chamada "Querela dos Gluckistas e dos Piccinistas".

Gluck, originário da Bavária, foi um compositor de importância excepcional. Em sua maturidade, aos 60 anos, instalou-se em Paris, onde permaneceu de 1774 a 1779. Tinha influência imensa, e os partidários da música italiana, como d'Alembert (o da Encyclopedie), fizeram Niccolò Piccini vir a Paris para combater Gluck. Piccini era um compositor italiano de grande prestígio.

Os dois músicos se estimavam, mas foram tomados como bandeiras opostas. Essa polarização, como sempre, simplificava as coisas. Gluck, alemão, significava orquestração e harmonia elaboradas. Piccini, o italiano, afirmava a tradição peninsular da melodia.

Para conhecer um trecho da Ifigenia in Tauride, de Piccini:


Para conhecer um trecho da Iphigenie en Tauride, de Gluck:



O que se dizia então era que a música de Gluck era mais "sinfônica", dando um papel importante expressivo para a orquestra. A de Piccini, na tradição italiana, baseava-se na melodia, a orquestra servindo de acompanhamento.

Ora, essa querela reproduzia outra que havia ocorrido um século atrás, a dos "poussinistas" e a dos "rubenistas". Esse debate ocorreu na Académie Royale de Peinture et de Sculpture, de Paris, em 1671. Tal como Gluck encarnava a harmonia e Piccini a melodia, Poussin encarnava o desenho, e Rubens a cor.

As equivalencias se faziam naturalmente. Melodia = desenho, harmonia = cor. Aliás, referimo-nos facilmente à "linha melódica" e ao "colorido harmônico". Ou à "melodia das linhas" e à "harmonia dos tons".

Compreende-se esse jogo de paridades. A melodia é uma nota atrás da outra e a linha é um ponto atrás do outro: ambas possuem trajetórias em seqüência. Elas são "mentais", claramente captadas pelo cérebro. A harmonia faz fundirem-se vários sons ao mesmo tempo, oferencendo uma impressão mais difusa, como as manchas de cores que se espraiam. Elas são "sensoriais", dirigem-se aos sentidos.


A melodia da linha ingresca, na Angelica, de Ingres, pertencente ao Masp:




Os acordes de cores na Diana e Acteão, de Delacroix, pertencente ao Masp:




De modo bem simplificado, é o que está subjacente na citação de David.

Há outros pontos. 
Um deles, é que David concebe a pintura de história (então a forma mais elevada da pintura, produzida em telas de grande formato contando episódios heróicos ou mitológicos) como baseada no corpo humano que, pressupõe ele, só pode ser dominado pela linha. David retoma, e radicaliza, a grande tradição do renascimento florentino. 

A tela inacabada, hoje no museu de Versalhes, que David projetou para figurar O juramento do jogo de pela" é um bom exemplo para demonstrar o caráter obsessivo de seu método pictórico pelo traço. Cada um dos personagens era desenhado nu, da forma mais precisa, sobre a tela. Seriam vestidos e coloridos depois.



David dá um excelente conselho a seu aluno. Diz que deve desenvolver as qualidades que possui. É melhor ser um bom "bambocciante", ou seja um pintor especializado em cenas de gênero representando epísódios da vida cotidiana e popular, do que um mau pintor de história. Nas "bamboccie", que triunfaram no século 17,  o colorido, os efeitos de luz, são importantes e o rigor do desenho não precisa ser tão exato. Como esta Festa de casamento, de van Ostade, que pertence ao Museu Real de Amsterdam,




Existe um paradoxo na principal observação de David que é, no entanto, compreensível. David prefere Piccini a Gluck porque um encarna a linha, o outro a cor. Ora, Gluck foi o autor do primeiro manifesto neoclassico com seu "Prefácio" à partitura da ópera Alceste, que data de 1769, bem anterior ao Juramento dos Horácios, de David, de 1784. Alceste e seu prefácio tiveram um impacto não só na música, com a mesma força e importância dos Horácios para as artes visuais. Ambos significaram a reforma das artes, a militância pela simplicidade, impacto e expressão. Historicamente, David e Gluck estão do mesmo lado. Mas David prefere a música italiana por causa da imagem que tem da melodia associada à linha.

Há outro paradoxo que quero apenas assinalar, e que não teria condições de aprofundar. Parece coerente que David critique Lairesse como fez, por causa se sua veemência eloquente e de seuss coloridos e brilhos, como no Heliodoro expulso do templo, do Museu Real de Amasterdão, 1764 (que parece prenunciar a obra de mesmo título de Delacroix na igreja de Saint-Sulpice).




Porém, que David faça ressalvas a Philippe de Champaigne (ou Champagne, como ele escreve), me deixa perplexo. Champaigne foi amigo de Poussin e referência da pintura francesa no século 17. Ingres o admirava. Não sei nada mais sobre as opiniões de David sobre Champaigne e gostaria de saber.

Aqui, a esplêndida Ressurreição de Lázaro, por Philippe de Champaigne, do museu de Grenoble, 1630 circa.



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