O milagre acontece na pequena e pacata comuna de Nohant-Vic,
no centro da França, hoje com 463 habitantes. Ali o viajante despercebido passa
diretamente pela igreja de São Martinho. Ela é muito discreta. No entanto, o
conjunto de pinturas murais na pequena igreja do século do séc XI e XII impressiona.
Muito longe dos holofotes turísticos, Saint-Martin conserva-se
com uma identidade peculiar e poderosa. Parece suspensa no tempo e ao mesmo instante
viva na contemporaneidade, emana novos sinais para novos espectadores.
Ao visitante destemido no rigoroso inverno resta a igreja
vazia, quase uma propriedade particular. É possível ver com calma, parar, ver
mais uma vez, sentar-se. O silêncio de outrora agora é aquele da contemplação. As
portas conservam-se fechadas, mas não trancadas. Basta empurrá-las e se dar
conta da escuridão ali dentro. Embora possa parecer estranho é preciso
economizar recursos e ao mesmo tempo não forçar o tesouro conservado em Saint-Martin
com luz manente. E claro, com visitas muito esparsas seria injustificável a
presença de luz o tempo todo. Entretanto, uma pequena placa avisa os visitantes
para apertar o botão que deixará a igreja iluminada por um tempo determinado. Não
se apresse, se apagar basta apertar mais uma vez, quantas vezes desejar.
A umidade é perceptível e o frio ainda mais intenso. Nada
disso atrapalha a descoberta das pinturas murais na igreja de Vic. O trabalho de
qualidade assustadora impacta de imediato, tira o ar e faz os olhos duvidarem e
lacrimejarem. A porta principal da igreja entrega uma única nave até o arco
triunfal e a abertura dá para o coro e a abside. Ali o espetáculo acontece.
O plano iconográfico é complexo, cenas do antigo testamento, da vida de São
Martinho e da vida de Cristo e da Virgem.
A aposta é que seja a mão de um único artista, pela coerência do traço, sempre elegante e firme, como indicam Paul-Henri Michel e Henri
Focillon. Este último, aliás, atesta “O mestre de Vic é, sem dúvidas, um dos
mais originais, um dos mais potentes da grande escola românica do século XII.”
A força da composição e o rigor das linhas nos cavalos
rigorosos dos reis magos.
Ou a força que abre a composição no arco triunfal do Cristo em
majestade em uma amêndoa. Sua mão direita erguida abençoa a todos, enquanto a
esquerda repousa nas escrituras. De olhar hipnótico, conserva-se altivo e concentrado.
O beijo de Judas impressiona pela movimentação e o jogo de
olhares e forças conflitantes na cena. O dedo de Judas inquisidor no cotovelo
de Cristo e seu olhar malicioso denotam suas características de traidor. Atrás, a
horda dos soldados nervosos e ávidos por uma justiça.
As pinturas murais foram descobertas no século XIX, mais
precisamente em 1849. A famigerada comissão dos monumentos históricos, cujo
inspetor geral era Prosper Mérimée, procura criar meios para proteger aquele
milagre. Os movimentos são múltiplos e uma forte onda de cópias são realizadas
em Vic. George Sand, que mantinha sua propriedade naquelas proximidades, igualmente
se sensibiliza. Seu filho Maurice – que matinha aulas com Eugène Delacroix, sob
seu pedido, realiza uma cópia sumária daquelas figuras.
Este ponto parece importante. As obras de arte são vivas!
Elas certamente possuem sua história e força inerentes ao tempo e modo em
que foram realizadas. No entanto, continuam vivas, falam de modo peculiar em
diferentes épocas, continuam a nos dizer. O mestre de Vic, ao realizar seu jogo
iconográfico complexo conversa com nossa contemporaneidade.
O mundo de Barbey d’Aurevilly é distante de Nohant-Vic, pelo
menos geograficamente. No entanto, o escritor de Les Diaboliques viveu em Saint-Sauveur-le-Vicomte, cujo sabor é do
século X. A leitura do início da novela À
un dîner d’Athées lembra a sensação dessas igrejas distantes no tempo e
presentes no mundo:
“Esta noite das igrejas, que ultrapassa um pouco a morte definitiva do dia no lado de fora, não deixam suas portas fechadas. Geralmente elas estão abertas, a hora Angelus, - e algumas vezes mesmo muito tarde, na véspera das grandes festas por exemplo, nas cidades devotas, onde se confessa em grande número para as comunhões do outro dia. Nunca, em nenhuma hora do dia, as igrejas da província são tão assombradas por aqueles que a frequentam quanto nesta hora da noite na qual os trabalham já se cessaram, na qual a luz agoniza e onde a alma cristã se prepara para a noite, - noite que parece a morte e durante a qual a morte pode chegar.”
Seja como for, a obra de arte viva em Vic suscita diferentes
emoções e entra em jogo um grau fractal de experiências.
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