Não havia, no mundo, local que apreciasse
mais as artes obscuras que um pequeno canto sombrio em certa rua de Paris. Ali,
a guilhotina, os crimes passionais, os assassinos, as damas fatais, eram postos
em evidência, e suas vítimas tornavam-se elemento de apreciação dos
espectadores daqueles delitos. E também ali, uma mulher, Paula Maxa, foi alvo
das mais cruéis atrocidades. Era o Tréâtre
du Grand Guignol.
Localizado no número 20 da Cité
Chaptal, em Pigalle, o espaço possui um histórico no mínimo excêntrico. O
edifício, erguido em 1786 como um refúgio e convento jansenista, foi saqueado
cinco anos após a Revolução Francesa. Em seguida, passou por uma reforma,
mantendo o aspecto original, com suas ogivas neogóticas e os anjos de
madeira que ornamentavam o foyer. Nos
anos de 1870, o padre da ordem dos Dominicanos, Henri Louys Rémy Didon, proclamou
o espaço como centro de seus sermões conservadores, contra o sexo
extraconjugal. E enfim, na década seguinte, aquela arquitetura do beco de
Montmartre tornou-se o ateliê de Georges-Antoine Rochegrosse, ele também,
responsável por conceber as mais diversas pinturas que mesclam violência e
erotismo, talvez a mais declarada delas, sua gloriosa e perturbadora Andromaque, vencedora do prêmio do Salon de 1883.
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Georges-Antoine Rochegrosse. Andromaque, 1883c. - Musée des Beaux-Arts de Rouen |
Antes de sua criação, havia o Théâtre Libre, fundado pelas mãos de
Oscar Méténier, um ex-oficial da polícia, que utilizava os pequenos casos
criminais como fonte material das exibições. Algumas portas adiante, nasce,
poucos anos mais tarde, o então Teatro do Grand Guignol. Ele teve seu
surgimento, portanto, em 1896. Abriu suas portas como Théâtre-Salon, em 16 de maio daquele ano, por Maurice Magnier,
obtendo pouco sucesso, já que os mini-dramas e peças de um ato pouco atraiam o
público. Méténier muda o aspecto do entretenimento.
O ambiente claustrofóbico, com
aspecto de teatro de câmara, os querubins que sorriam obstinados para o público
do foyer, as ogivas em carvalho, tornavam-no
um ambiente perfeito para a cena, amálgama entre as peças e a arquitetura. Desta
forma, em 13 de abril de 1897, é inaugurado o Théâtre du Grand Guignol. Méténier concebe o modelo ideal do entretenimento, intercalando peças de comédia entre as atrações principais – as
peças rosse. Essas, banhadas em
violência, sangue e as mais variadas barbaridades. A fórmula perfeita, com sua douche écossaise, os banhos de água quente, seguidos das duchas frias - peças cômicas - para acalmar o coração do público aterrorizado.
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O teatro lotado, em 1947. |
O termo em francês sintetiza a
via de manipulação da cena sangrenta. Grand
= grande; Guignol = fantoche,
marionete. Assim, a grande marionete, o próprio humano trabalhado pelos dedos
do espetáculo. É possível que seu título tenha surgido a partir da clássica
dupla Punch e Judy, do mundialmente conhecido teatro de marionetes. Na França, guignol seria o termo para caracterizar
qualquer um desses objetos de entretenimento.
O teatro e seu estilo de cena foi vendido em 1898 para Max Maurey, mas apesar de sua fama local, foi somente
com a chegada do doutor Alfred Binet e André de Lorde, o conhecido “Le prince de la terreur” que ele se tornou
uma atração mundialmente conhecida, trazendo inclusive os mais distintos
monarcas mundiais para a platéia.
André de Lorde |
Fã absoluto de Edgar Allan Poe,
filho de um médico, de Lorde era obcecado pelo mórbido. Entre os anos de 1901 e 1926 escreveu dezenas de peças e contos
de horror, muitos publicados nos jornais da época, com textos explicativos do
próprio autor. No cinema, algumas de suas novelas e contos foram adaptados,
dentre eles, La Villa solitaire (1909)
de D. W. Griffith e Figures de cire (1913),
de Maurice Tourneur. Foi ele quem mudou o repertório do Grand Guignol, e
inseriu naquele palco do Pigalle, peças situadas em manicômios e laboratórios.
O público jamais esteve tão assombrado com as cenas. Uma média de dois
espectadores desmaiava por noite, e os médicos já se tornavam uma presença
necessária no lugar. A direção de cena do Grand Guignol passou então para as mãos de Camille Choisy.
É nesse período em que entra em
cena Paula Maxa, nome artístico de Marie-Thérèse Beau. Sua presença no palco ia
além da mera atuação. Ela condensava em si os assassinatos do mundo inteiro,
das formas mais variadas e inimagináveis. Durante sua participação no teatro, foi
assassinada mais de dez mil vezes, estuprada num total de três mil, escalpada,
queimada viva, cortada em noventa e três pedaços e colada de volta, esmagada
por um rolo compressor, estripada e devorada por um leão.
Paula Maxa |
Se de Lorde era a alma do texto guinholesco, Maxa era o corpo que materializada os atos macabros
de seu autor. A tela em branco daquele artista que adorava manchá-la de sangue.
Os números não cansam de assustar. Camillo Antona-Traversi, secretário de Choisy,
contabilizou os gritos apavorantes de Maxa, segundo ele: protestou “ajude-me” 983
vezes, “assassino!” 1263, “estupro” 1804 vezes. 1805, se contar a tentativa
interrompida do clamor por auxílio.
Paula Maxa e Camille Choisy |
Maxa foi demitida em 1928, por
Jack Jouvis, o novo diretor, por medo de perder o controle sobre o
teatro, que via, dia após dia, os holofotes cada vez mais voltados para a atriz.
Jouvis, ainda, afastou-se do projeto “gore” das peças, voltando-se para exibições de drama psicológico. Maxa, por consequência, abriu, algumas portas adiante, o
Teatro do Vício e da Virtude (Théâtre du
Vice et de la Vertu), trabalhando também cinema mudo, como o clássico Les Vampires (1915), de Louis Feuillade.
O cinema já nos rendeu algumas
adaptações do mundo soturno do Grand Guignol. Mad Love (1935), de Karl Freund, Theatre
of Death (1967), de Samuel Gallu, ou mesmo Dead Silence (2007), de James Wan trazem
o mesmo espírito daquele antro do medo para o cinema. Mais recentemente, a Netflix
produziu uma adaptação interessante. La femme la plus assassinée du monde, sob direção de Franck Ribière. Os
horrores simulados, circunscritos no interior da sala de espetáculos, são mesclados à violência anônima de um peculiar serial killer que ronda as ruas parisienses, e aquilo que Maxa encena para a platéia ultrapassa os limites do palco.
Anna Mouglalis interpreta Maxa,
com sua clássica maquiagem negra ao redor dos olhos. Ali, como o próprio
espectador anuncia, todos se reúnem para ver a mulher mais assassinada do
mundo. Ela inicia seu monólogo com as célebres memórias da verdadeira Paula
Maxa, publicadas no artigo “Quinze ans au
Grand-Guignol ou la poésie de la peur”, no n.182 do Les Annales, lançado em 1965, apenas cinco anos antes de sua morte.
É um filme interessante para aqueles que desejam saber mais
sobre a narrativa do teatro, suas montagens e as histórias, por vezes cômicas, da reação exacerbada dos espectadores, desmaiando antes mesmo do início da
atração. O filme está disponível na Netflix, e o trailer, com a fala emblemática
de Maxa, pode ser visto abaixo.
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