A casa da noite e da escuridão

O que acontece quando os fantasmas de nosso passado, os aprisionamentos familiares e os medos internos refletem-se em terrores sobrenaturais?

The Haunting of Hill House, produzida pela Netflix e dirigida por Mike Flanagan nos fala sobre isso. Em meio a seus dez episódios, atravessamos concomitantemente passado e presente da família Crain.



A série é baseada no romance homônimo de Shirley Jackson,  cujo primeiro parágrafo abre, inclusive, o episódio piloto, na voz de Steven Crain que, na produção, incorpora o inconsciente autoral de Jackson.Trata-se da terceira filmagem da obra de Jackson, levada às telas do cinema por Robert Wise, no clássico de 1963 The Haunting, e posteriormente por Jan de Bont em 1999.

Quando crianças, os irmãos Crain: Theodora, Steven, Shirley, Luke e Nell viveram, por um curto período, com os pais, Olivia e Hugh, na casa. Ele, um empreendedor, cujo trabalho envolve reformar residências a fim de revende-las posteriormente. Ela, uma arquiteta que leva no coração o sonho de enfim construir seu próprio lar, sua forever house. Ambos funcionam apenas juntos, ela a pipa buscando eternamente no céu alcançar seus desejos, ele, a linha que a mantém firme no chão, e ambos, um coração unido que aquece e une os filhos. Hugh e Olivia complementam-se. Ao passo que a sanidade dela se esvai, pouco a pouco, absorvida pelo mal da casa, a capacidade dele de corrigir perde sua função. 


De forma magistral, Flanagan, que dirige todos os episódios, nos nutre com fragmentos de um passado pouco claro, recriado paulatinamente pela memória comunitária da família. Como crianças, a vida infantil não parece fazer sentido. Trilhados no caminho da dor e dos traumas deixados pela casa assombrada, pela memória triste, ainda muito vívida, do suicídio maternal e o visível abandono paterno, eles tentam se ater aos fantasmas que desconhecem, aqueles enigmáticos, silenciosos e sombrios moradores de um pretérito ainda mais distante da mansão.

Theo é sensitiva. Como a mãe, compreende a dor alheia pelo simples toque. Usa luvas, e fecha-se em seu próprio mundo, escolhendo apenas a vulnerabilidade da interação humana com seus pacientes, as crianças as quais orienta no consultório de psicologia infantil. Steven é cético. Como escritor, encontra na literatura o caminho para reconstruir os acontecimentos familiares. Soterra os medos sobrenaturais em desculpas científicas e nos distúrbios psicológicos que crê assolarem o histórico da família. 


Shirley é a irmã do meio. Seu contato prematuro com a morte a solidifica para o trabalho de tanatopraxia, que realiza na casa funerária mantida nos aposentos laterais de sua própria residência.

Nell e Luke são gêmeos. Os caçulas da família, e como qualquer criança mais jovem, aqueles que mais se perturbam com a presença fantasmagórica da casa Hill. A conexão de ambos, também ela chave de uma via de compreensão extraordinária, reflete-se nos dizeres contínuos “it’s a twin thing”. O futuro de Nell não parece muito promissor. Desde jovem, é acometida por terrores noturnos e pela paralisia do sono, que chegam, em sua maioria, acompanhados de uma presença perturbadora, a Bent Neck Lady, a mulher do pescoço quebrado. 


Luke, encontra no consumo de heroína uma fuga para a alma torturada. Como a irmã, é perseguido por um fantasma, o enigmático sr. Hill, tão pequeno em vida, que na morte transformou-se no maior homem já visto.


As angústias nunca deixam de assolar os Crain. O colapso é evidente em cada um deles. Na dor de Nell, impossível de encontrar resquício sequer de alegria; ou de Luke que precisa esquecer a sobriedade para mergulhar em um mundo sem dor; Theo, enclausurada em sua própria pele, impossibilitada de nutrir o corpo com o calor humano do outro; Olivia, devorada pelas dores de cabeça, que parecem, dia após dia, consumir uma sanidade cada vez mais longínqua; Hugh, cujo desejo de consertar o seu entorno o distancia cada vez mais dos filhos; Shirley que como pai tenta corrigir o incorrigível, restando a ela apenas mascarar a morte; e Steven, que sem perceber esteve sempre no cerne da casa, cegado pelo ceticismo e pelo medo de encontrar na verdade o caminho para a liberdade de sua alma.


The Haunting of Hill House capta os elementos clássicos da literatura de Jackson. A narrativa certeira, sempre incômoda e lançada em finas teias de descrição, encontra um novo caminho na trama labiríntica dos meandros da Hill House dos Crain. Não se trata de uma adaptação literal, e no entanto, encontramos ali os fragmentos da famosa casa da colina. A sensibilidade de Theodora e os traços pessoais, a permanência de Abigail, refletida no enclausurado quarto escarlate. Eleanor - Nell -  igualmente mantém uma conexão demasiada visceral com a casa e seu passado, sempre intimamente ligada com a atmosfera obscura da casa.

A figura de Shirley Jackson, por sua vez, divide-se entre os dois pilares de ceticismo da família Crain, Entre a própria Shirley, capaz de trazer beleza para os mais sombrios elementos – como a morte – e em Steven que fundamenta a narrativa da série com sua escrita parelha à de sua genitora.

The Haunting of Hill House é capaz de incorporar uma visão autônoma sobre a obra de Jackson. Sustenta-se, como a casa, em uma estrutura sólida, pouco sã, abrigando escuridão em seu interior. O viés sobrenatural não esmaece o viés humano, dramático. É necessário adentrar o mundo particular de cada um dos familiares, para enfim compreender o coração digestivo de Hill House.


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