Arte e reencarnação

Suspiria, Robocop, Halloween, Mary Poppins e sei lá mais o que. Remakes e continuações pipocam nas telas de cinema. Lembro-me de uma frase de John Carpenter; "Isso só confirma o que eu venho dizendo -Hollywood não tem mais nenhum tipo de idéia nova."

Carpenter se refere ao "remake", há vinte anos,  de Assalto à 13ª DP, filme que ele assinara bem antes, em 1976. Frase acusadora, ou ressentida, talvez? Porque, vinda de quem vem, surpreende.




O original Assalto à 13ª DP é, ele próprio, uma paráfrase de Onde Começa o Inferno, que Howard Hawks dirigiu em 1959, e deve bastante, sem dúvida, a A Noite dos Mortos Vivos, de George Romero (1968). Carpenter é um cineasta que não hesitou em refazer alguns dos mais venerados "cults" do cinema fantástico: O Enigma de Outro Mundo (1982), A Cidade dos Amaldiçoados (1995) ou Memórias de um Homem Invisível (1992). Os resultados dessas retomadas, admiráveis, demonstram que uma boa ideia ou uma boa história podem ser sempre ressuscitadas e renovadas. As artes não cessam de reciclar invenções antigas, para reinventá-las.

Quantas obras-primas sucessivas não provocou, por exemplo, o "Don Juan" de Tirso de Molina [1584-1648]? Foi o período romântico, reiterado depois pelas posturas modernas, que insistiu na criação a partir do nada. Ainda assim, disfarçados, um livro renascia de outro, uma sonata ecoava em outra, uma tela surgia por trás de outra tela. As puras invenções maravilham, seu caráter inédito causa espanto: o prazer vincula-se ao inesperado.


Max Slevogt - O cantor Francisco d'Andrade no papel de Don Giovanni, na ópera de Mozart que retoma o tema de D. Juan. Tela de 1912


As retomadas estimulam a criação de outro modo, que permite apreender e saborear transfigurações. O melhor lugar, para quem degusta, é o espaço vazio entre as obras que se espelham. Ali, no invisível e impalpável, elas se encontram.

O princípio do "remake" baseia-se numa noção delicada: a semelhança. Quem a melhor intuiu, quem a melhor expôs, e isso numa obra literária, foi Proust [1871-1922]. Ele pressupõe que o lugar mais verdadeiro para a existência da obra não é nem a própria obra nem sua presença em nosso espírito, mas um terceiro lugar, uma terceira margem do rio.

A obra não se oferece apenas em sua existência material. Com essa ideia, Proust afasta dois fetichismos: o do objeto e o do original. Em seu modo de ver, a reprodução, mesmo fotográfica, adquire um papel nobre. Por conter, por trazer a semelhança da obra, a fotografia faz parte dela. Ainda que múltipla, a reprodução torna-se única graças à experiência do espectador: "Aquela que eu vi e vejo, que se encontra em minha mesa ou em minha parede", diz Proust. Nada de aura perdida, portanto, nada de preocupação com qualquer exposição às massas.


Fratelli Alinari - O Moisés de Michelangelo - foto de 1860


Proust encontra-se nos antípodas do célebre texto de Walter Benjamin [1892-1940] sobre a reprodutibilidade técnica da obra de arte. A arte existe na expansão de analogias e semelhanças, não em seus limites materiais ou de autoria. Um original é constituído pela reprodução, pela reiteração, pelo comentário, pela menção, pela evocação, pelo "remake". São modos profundos, e não substitutos vazios. Embora uma teoria do "remake" devesse assinalar a diferença com o princípio da reprodução, porque os "remakes" são obras verdadeiras, com seus poderes próprios.

De qualquer forma, criação ou retomada, a arte vive de representação ou, antes, de reapresentação.

Comentários

  1. Boa reflexão, Jorge. O estatuto artístico do remake ainda suscita barulho, sobretudo entre as legiões de fãs de filmes cult. É verdade também que alguns diretores ajudam a reforçar a impressão de que a obra original, como se fora um relicário sagrado, não pudesse ser profanada por eventuais reinterpretações. Mas, seja como for, o que mais me desagrada nessas discussões pretensiosas são as inevitáveis comparações extemporâneas entre o original e o remake com vistas a definir qual filme merece ser objeto dos nossos melhores afetos. Dario Argento, por exemplo, desaprovou o remake de Suspíria, que teria traído o "espírito" do original. No mesmo diapasão, Paul Verhoeven desabonou as sequências de Robocop porque as novas versões não teriam conservado a aura debochada e sarcástica do filme de 1987. Parece que polêmica parecida teve lugar com o remake de Bad Lieutenant, originalmente dirigido pelo Abel Ferrara. Quem parece ter entendido melhor o lugar da obra de arte - numa terceira margem do rio, como você bem apontou - foi o Willian Friedkin, que dedicou seu magnífico e subestimado"Sorcerer" ao diretor de "Salário do Medo".

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