Nossas roupas


“Assim, há forte fundamento para a opinião de que são as roupas que nos usam, e não nós que as usamos; podemos lhes dar o feitio de um braço ou de um busto, mas elas moldam nossos corações, nossos cérebros e nossas línguas a seu bel-prazer.”

O trecho acima é de Orlando, obra de Virginia Woolf publicada em 1928. A citação reflete o momento em que o protagonista começa a se acostumar com o uso das roupas femininas. A maestria da escrita de Woolf indica ao leitor a importância dessa mudança e a dimensão do quanto as novas vestimentas transformaram a postura e a gestualidade de Orlando.

 O modo como embalamos nosso corpo interfere nas relações sociais, exceto nos casos em que se vive em comunidades de nudismo ou naturismo. As vestimentas, além de protegerem ou cobrirem o corpo, podem expressar identidades.

Cartão-postal, autor desconhecido. ?Hardi Simon?, c. 1903-1920. Acervo Rare Book and Manuscript Collections, Cornell University Library, NY, EUA.

Há um conjunto de cartões-postais alemães no acervo da universidade americana Cornell University (felizmente disponível para consultas online). A imagem acima exibe no centro uma figura masculina com roupas formais. Nas duas fotos laterais, o mesmo modelo aparece com vestimentas femininas. A inscrição “?Hardi Simon?” brinca com a ambiguidade da composição.


Cartão-postal, autor desconhecido. ?Zwegaly?, c. 1903-1920. Acervo Rare Book and Manuscript Collections, Cornell University Library, NY, EUA.

No acervo da universidade americana este conjunto recebeu o título de Postais de travestis alemães. São aproximadamente 35 imagens explorando o mesmo tema e em muitas delas o ponto de interrogação acompanhando os nomes dos modelos se repete.

Cartão-postal, autor desconhecido. Ernst Loretto , c. 1903-1920. Acervo Rare Book and Manuscript Collections, Cornell University Library, NY, EUA.


Cartão-postal, autor desconhecido. ?Friedel Schwartz?, c. 1903-1920. Acervo Rare Book and Manuscript Collections, Cornell University Library, NY, EUA.

As poses imitam o repertório gestual dos retratos femininos do século 18, são bustos, perfis, modelos sentados, encarando ou desviando o olhar do observador. 

Marcel Duchamp como Rrose Sélavy, fotografia de Man Ray, c.1920-21. Acervo Philadelphia Museum of Art.

Alguns artistas exploraram esse embate entre imagem e identidade, Marcel Duchamp talvez seja o caso mais conhecido. Nos anos de 1920, retratado pelo fotógrafo Man Ray, posou usando roupas femininas com o nome Rrose Sélavy. O artista abusava de casacos, golas esvoaçantes, penugens e chapéus. No retrato acima, o gesto das mãos, que pressionam a estola volumosa, cobre ainda mais o corpo, mas nem por isso deixa de indicar sensualidade.

Christopher Makos. Altered image, 1981

Nos anos 1980 Christopher Makos realiza uma série de retratos de Andy Warhol. Altered Image suscita reflexões, seriam apenas as roupas elementos capazes de subverter identidades?  Nos retratos de Makos, o modelo não usa saia, vestido ou outras peças tradicionalmente referenciadas às mulheres. Warhol veste camisa social, calça jeans e gravata. De fato, a peruca loura e a maquiagem são itens diretamente aludidos ao mundo feminino. Mas é o gesto do modelo o principal artifício de sensualidade. As pernas cruzadas e as mãos gentilmente pousadas sobre o sexo masculino, criam um jogo que oscila entre o pudor e erotismo.

Benard Buffet. Le travesti, 1953. Óleo sobre tela.

Nos anos cinquenta o pintor Bernard Buffet (1928-1999) compõe um retrato expressivo.  Le travesti (O travesti) é melancólico. As formas geométricas dão aspectos de dureza ao rosto. A boca cerrada e os olhos que se abrem pouco, perdem vivacidade. A pele é preenchida por um azul tênue que contrasta com o restante da composição. As cores da roupa, dos cabelos, do chapéu, das flores e do verde que compõe o fundo não se ajustam com a introspecção e tristeza do modelo.
 
Cena do filme Some Like It Hot, 1959. Atores Tony Curtis e Jack Lemmon, direção de Billy Wilder.

Usar roupas que subvertem códigos normativos possibilita experiências, vivenciar o outro, criar uma segunda identidade. O cinema tem muitos exemplos, Some Like It Hot (Quanto mais quente melhor), de 1959, tem dois personagens que usam roupas femininas para participarem de um grupo musical composto só por mulheres. Participando do grupo os dois se salvariam, pois não seriam descobertos por uma perigosa máfia que os perseguia pelo fato de terem testemunhado um assassinato cometido pelo bando. Já em Tootsie (1982), protagonizado por Dustin Hoffman, também o personagem usa roupas e gestos femininos, desta vez para conseguir um papel em uma novela.
Nestes casos o uso de roupas femininas funcionava exclusivamente para alcançar objetivos que só seriam atingidos subvertendo a imagem normativa masculina.

Yasumasa Morimura. Self-portrait as Marilyn in Tokyo University, Komaba Campus, 1995.

Desde o início dos anos 80, o artista japonês Yasumasa Morimura produz autorretratos referenciando diretamente figuras da história da arte, mídia e cultura popular. Suas fotografias simultaneamente celebram e satirizam personagens icônicos. Morimura usa maquiagem, figurinos e próteses para se transformar nos protagonistas que escolheu retratar. Na fotografia acima, ele recria a famosa cena de The seven Year Itch (O Pecado Mora ao Lado) de 1955. Ao invés do cenário urbano de New York utilizado no filme, o artista transforma o segundo plano da cena colocando uma plateia de estudantes sentados em uma grande sala-auditório da Universidade de Tokyo. A provocação é evidente: um homem de vestido esvoaçante no meio acadêmico é no mínimo conflitante com os costumes rígidos do sistema educacional japonês.


 As escolhas e os modos de usar roupas transformam-se em determinados códigos que, de acordo com o momento, significam afiliações de gênero, classe, etnia, nação, profissão, orientação sexual, etc.

Laerte. Manual. Publicado no blog Muriel Total em 16.03.2009.


Encarnar Orlando ou Muriel, como na tirinha de Laerte, podem conspirar para conceber uma nova vida, tão desejada e potente, mesmo que algum ministério proclame o contrário. 

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