Na idade da inocência


A infância aparece de modo múltipla, as crianças estão em situações diversas e, sobretudo desvelam uma complexidade por vezes ignorada ou eclipsada em nosso mundo: ali, roubam um pão, ou, às escondidas se embriagam na igreja ou nas ruas. Assim são as representações da infância por Paul-Charles Chocarne-Moreau. 

 Le Voleur rusé
 
As imagens mantêm ao menos duas particularidades, a vida dessas crianças é tomada essencialmente quando não está sob o olhar de seus tutores: a rigor, o importante para essas obras é o que as crianças fazem quando não estão sendo vigiadas e controladas. E há um recorte estabelecido nas pinturas de Chocarne-Moreau, não o interessa as classes abastadas ou privilegiada, antes, é a vida da criança trabalhadora na qual as traquinagens são postas lado a lado aos deveres precoces. Assim o é Le boulanger et le sacristin. Uma entrega de pães, provavelmente. O pedaço da cesta é visto no canto inferior direito. Duas crianças no centro da obra e entre elas, uma arara. A relação entre os três é interessante, formam um arco ogival que faz eco à arquitetura daquele lugar, assinalada através da porta, atrás da criança-padeiro. No entanto, enquanto o acólito tira notas de seu violão, sorri da ação do padeiro. Este, brinca com a arara assoprando fumaça de seu cigarro. Brincadeira infame ou despretensiosa.

 Le boulanger et le sacristin


A mesma fórmula para o macaco na rua:

 Le petit boulanger ,se moquant du perroquet


Esse interesse pela infância evidentemente não é particular de Chocarne-Moreau. A obsessão em indicar o lugar da pureza essencialmente na infância é um verdadeiro tabu. Algumas obras de Eric Fischl também apontam para uma infância diferente, o caso mais emblemático certamente é Bad Boy, pintura de 1981. Obra poderosa, mantém um clima cinematográfico à la Brian de Palma. Uma mulher nua encosta seus dedos delicadamente na unha do pé, a torção do corpo favorece a visão das nádegas e da vulva. No entanto, a presença do pré-adolescente é constrangedora e perturbadora. Ele assiste aquela cena e ao mesmo tempo enfia sua mão na bolsa da garota. A sugestão é do roubo e também da penetração sexual. A forma da abertura da bolsa é indicativa:




Eric Fischl. Bad Boy, 1981
Talvez o livro de David Hamilton denote algumas coisas, e bagunce esse assunto espinhoso. Age of innocence, livro por certo maldito em nossa época avessa a tudo aquilo que seja diferente a ela, falar em sexualidade ou mesmo perversidade não cabe em nosso mundo. A fórmula é: se não falar no diabo ele não aparece.



Os devaneios do fin-de-siècle, cultura do simbolismo e do decadentismo pensou de forma mais acentuada no assunto. Corriqueiro e mesmo uma obsessão entre artistas, o tema do impuro, do negativo, dos excessos esteve em moda. Gustav Mossa em sua obra Salomé, de 1901 apresenta a princesa judia como criança. Ela sentada em seu berço, pequeno para seu tamanho, sobre seu pente e de frente para uma boneca. Enfeitada com anéis, tornozeleira e colar, seu seio em formação está à mostra. Segura uma grande espada que verte sangue e é possível ver sua língua lambendo o metal. Seus olhos são profundos como a Bebedora de Absinto de Félicien Rops. Atrás da filha de Herodíade, rosas enormes decoram o quarto com cabeças ensanguentadas e lembram a decapitação de João Batista.

Gustav Mossa. Salomé. 1901


Se por um lado a pintura nutre forte assento à infância desvelada para além da inocência, o cinema evidentemente não fica atrás. Bad Seed (1962), de Mervyn LeRoy; Village of the Damned (1995), de John Carpenter; Ils (2006), de David Moreau e Xavier Palud entre tantos outros mostram um lado perverso da infância. O Dèmoni 2 (1986) de Lamberto Bava, que mostra demônios incorporando em humanos, uma verdadeira mistura entre os filmes de zumbis e O Exorcista de Friedkin, corrompe a bondade e inocência da criança, incorporada e bestificada em uma das cenas.



As malditas crianças, como encaradas no filme These are the Damned (1962), de Joseph Losey, faz um paralelo entre o medo e a paranoia de uma guerra nuclear e as crianças incididas pela radiação. Portam em si o mal daquela época, são danadas e excluídas. Para se aproximar das crianças é preciso proteção e tomar cuidado. 



A ferida também é escancarada com filme de Thomas Vinterberg, Jagten ou, em português A caça (2013). O filme é essencial para essa discussão, a palavra da criança é posta como verdade absoluta, não há dúvidas da pureza na idade da inocência, mas a história não é bem assim.



O assunto tabu é revirado e apresentado sistematicamente pela cultura, valeria uma curso ou uma jornada de estudos para debater o tema.


Comentários

  1. Ótimas reflexões, Martinho.

    Deixo também a dica de outro filme com uma visão bem perturbadora da infância. Os Meninos, de Narciso Ibáñez Serrador, de 1976. No original, ¿Quién puede matar a un niño?

    https://www.imdb.com/title/tt0075462/

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