As feministas são censoras?

Em 1981, o presidente Ronald Regan nomeava, pela primeira vez na história, uma juíza para a suprema corte dos Estados Unidos.


No mesmo ano, foi realizado First Monday in October (no Brasil, Um juiz muito louco), com a direção elegante e discreta de Ronald Neame, que sabe muito bem pôr em evidência os atores.

Originalmente uma peça de teatro, o filme tinha duas formidáveis estrelas como protagonistas: Jill Clayburgh e Walter Matthau. 


A juíza Ruth Loomis tem dificuldades para se inserir num meio fortemente masculino que, se não é exatamente hostil, sente-se incomodado com a presença de mulher numa função reservada aos homens. Esses tropeços são descritos com cuidado, sobretudo na excelente cena em que ela é examinada pelo senado. Perguntada se não sente que sua condição feminina viria atrapalhar suas funções, responde: "Eu consigo pensar perfeitamente quando tenho minhas regras".

Essas dificuldades não apenas tornam o filme afirmativo, mas fazem pensar que 1981 é ontem, e que nesse ontem os direitos femininos parecem ainda pré-históricos.




First Monday in October não é, porém, apenas um filme simpático à causa feminista. Ele introduz um jogo contraditório. O juiz Dan Snow, representado por Walter Matthau diz, num momento: "Você não precisa concordar com um homem para respeitá-lo." E, no início, o juiz que faleceu (e deu lugar para a nomeação da nova juíza), conservador, quis, no entanto, que Dan Snow, democrata ao ponto de ser chamado de socialista, fosse o orador em seu enterro.




A contradição surge quando a corte deve julgar um filme pseudo-educativo e realmente pornográfico, intitulado A ninfomaníaca nua. Ele deve, ou não, ser proibido? O juiz Snow nem aparece na sessão privada especial destinada aos juízes, para escândalo da juíza Loomis que quer examinar conscienciosamente a "obra", verificando se, em algum lugar, há, pelo menos, "um lampejo de arte".

O juiz não precisa ver o filme, porque é, por princípio, absolutamente contrário a qualquer censura: "Então é uma porcaria? E se for uma porcaria? Essa não é a questão. Porcaria tem o direito de ser uma porcaria."

A juíza, em nome da dignidade feminina, quer censurar A ninfomaníaca nua.

Minha atitude mais imediata foi compartilhar a opinião do juiz, o que ainda faço. Mas com menos nitidez de sentimento em relação ao que tinha no início.

Não creio que a censura seja artisticamente ruim. Ela é ética e moralmente abominável. Ocorre que a história das artes tem um rol enorme de exemplos em que ela estimulou a criação, já que os artistas, para driblá-la, eram obrigados a proezas de invenção. 

O célebre beijo entre Ingrid Bergman e Cary Grant, entrecortado por uma conversa ao telefone, enganava a exigência do código Hayes, que determinava o número de poucos segundos que um beijo podia durar. Hitchcock lançou seu filme com a seguinte frase: "O mais longo beijo da história do cinema". Essa cena extraordinária de invenção não existiria sem a censura do código Hayes.


No entanto, por princípio ético, toda censura deve ser condenada e uma porcaria tem o direito de ser uma porcaria.

Mas a posição da juíza, ao ver a atriz pornográfica como objeto de prazer de tantos homens ao mesmo tempo, também é compreensível, em nome da dignidade feminina. 

Creio que é melhor, porém, o combate por outros meios: críticas, manifestações contrárias de todos os tipos, protestos. Porque, abrindo flanco à censura, todos os controles, e os piores, tornam-se possíveis.

Ao trazer a afirmação feminista de uma juíza nomeada para a Suprema Corte, First Monday in October assinala também, com o debate sobre a censura, a inflexão autoritária que uma luta do tipo pode tomar. O combate das minorias, que é fundamental, em sua crispação contra as formas opressoras, por vezes é levado ao autoritarismo,  graças à exasperação das lutas. Um corolário delicado de assinalar, mas que me parece necessário.

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Vi, logo em seguida, outro filme, que me ofereceu o entusiasmo de um poder feminino subversivo e frondeur: Modesty Blase, de Joseph Loosey (1966), com a sublime Monica Vitti. Com ele (e ela!), sociedade masculina leva uma rasteira.







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