Sobre líderes e pestes


Há cerca de um mês, uma reportagem publicada no jornal La Nación chamou-me a atenção. Intitulada Diez imágenes de la peste: lo que la historia del arte puede aportar a la conciencia colectiva, de autoria de María Paula Zacharías, ela apresentava, dentre outras, a famosa obra do pintor uruguaio Juan Manuel Blanes, Un episodio de la fiebre amarilla, de 1871 – acompanhada dos comentários da distintíssima historiadora da arte Laura Malosetti. Diante da potente imagem da pintura de Blanes na tela do computador, perguntei-me: e no Brasil, que imagens nos remetem à doença ao longo de nossa história artística?

Não tentarei aqui um retrospecto dessas obras porque decerto me faltaria competência. No entanto, gostaria de lembrar de uma pintura que, além de evocar uma epidemia que assolou nosso território em meados do século XIX, permite que reflitamos sobre o presente. Primeiro, apresento-a; em seguida, retorno à questão.


François-René Moreaux: Dom Pedro visitando os coléricos, 1863. Localização ignorada.


François-René Moreaux foi um pintor francês com atuação no Brasil e de estimada reputação no seio da corte imperial, responsável pelas famosas telas Ato de coração de Sua Majestade o Imperador, de 1842, e Proclamação da independência, de 1844. Em 1863, Moreaux pintou Dom Pedro visitando os coléricos (1). A tela retrata uma cena de tratamento do surto de cólera-morbo enfrentado pela população brasileira em 1855. A doença foi anunciada em maio, disseminada a partir da embarcação portuguesa O Defensor, aportada no Pará. Dizimou sobretudo a população pobre e escrava (2). O recinto, uma espécie de enfermaria improvisada, como indica a fácil comunicação com o espaço externo, é marcado pela atuação de irmãs de caridade. Talvez se tratasse de uma das enfermarias especiais, de caráter provisório, construídas e mantidas pela Santa Casa de Misericórdia para cuidado dos doentes à época (3), em um tempo onde ainda não existia um sistema de saúde público e gratuito. Um jovem Pedro II é o protagonista da cena, visitando a enfermaria a fim de observar as mazelas infligidas aos seus súditos. Fardado, o monarca lança um olhar piedoso ao doente sobre o leito que acaba de descobrir. O singelo ato sugere o desvelar da doença, o confronto com os males da peste, mas também parece indicar que o corpo inerte sobre a maca talvez já carecesse de vida.

Diante do próximo contato, a hesitação dos personagens ao seu redor parece imediata: a irmã devolve um olhar de preocupação para Pedro II, enquanto uma de suas mãos instintivamente faz um sinal de contenção. Gestos e olhares semelhantes podem ser vistos nos homens de preto atrás do monarca, alguns deles certamente seus ministros – como é possível confirmar no exame das fisionomias a partir de uma litografia de Sébastien Sisson divulgando o Gabinete Paraná, formado em 1853 e liderado por Honório Hermeto Carneiro Leão (Marquês do Paraná), logo à esquerda de Pedro II. Todos parecem temer o contágio da doença pelo líder da jovem Nação.



Sébastien Sisson: Gabinete de 6 de setembro de 1853. Litogravura.


A obra de Moreaux reporta-se a uma famosa pintura de seu compatriota Antoine-Jean Gros, Bonaparte visitando os pestilentos de Jaffa, de 1804. A magnífica tela faz referência às campanhas do Egito e à visita do general Napoleão a um hospital improvisado em Jaffa no ano de 1799, onde tratavam-se os soldados infectados pela peste bubônica. O gesto corajoso e ao mesmo tempo tranquilo de Bonaparte, despindo-se da luva e tocando o peito do soldado moribundo, é recebido com receio pelos subordinados sãos, dentre os quais o médico-chefe Desgenettes, que se prepara para conter o general, ou mesmo o soldado logo abaixo dele. A escolha de Gros por representar aquele toque, nunca ocorrido segundo as fontes, associa Napoleão Bonaparte aos monarcas franceses, que segundo a tradição teriam o milagroso poder de cura de escrófulas com o mero toque (4).



Antoine-Jean Gros: Bonaparte visitando os pestilentos de Jaffa, 1804. Museu do Louvre, Paris.


Conforme já apontou a historiadora Maraliz Christo, Dom Pedro visitando os coléricos não possui a dramaticidade do quadro de Gros, nem menos parece se associar aos poderes pseudo-mágicos dos reis taumaturgos. A tela também não se preocupa em apresentar a brusca divisão familiar ocorrida com a contração da peste, como no quadro mais tardio de Blanes (5). Contudo, o quadro de Moreaux compartilha com o de Gros o exemplo do líder que se arrisca pelos seus, que se aproxima das vítimas, que se compadece de seu infortúnio e que busca a resolução das mazelas de seu povo. Alçam, legitimamente, à condição de pinturas de história, e conquistam, seja por sua forte impressão, seja por sua capacidade de se fixar no imaginário, a condição de fatos, ainda que por vezes reinventando o passado.



Pedro Ladeira/Folhapress: O presidente Jair Bolsonaro cumprimenta apoiadores diante do QG do Exército em Brasília. Fotografia publicada no jornal Folha de São Paulo em 19/04/2020.


Em 2020, diante da crise provocada pelo COVID-19, do aumento vertiginoso do número de casos e do esgotamento rápido de leitos e materiais básicos para o tratamento do vírus no Brasil, deparamo-nos com um governante cuja postura é completamente inadequada para combater a situação. O que ele representa, afinal, o líder ou a própria peste? Podendo ser um exemplo para o seu povo, escolhe contrariar as autoridades preocupadas na resolução do problema. Podendo passar uma mensagem de confiança para o país, opta por relativizar o contágio e desestimular o isolamento social, pondo em risco milhões. Longe estou de sugerir que a monarquia seria um regime mais adequado para o Brasil – o que alguns lunáticos por aí ainda propõem. Na verdade, é Bolsonaro o inadequado para o regime democrático brasileiro. Seja como for, que imagem de sua condução do país nesses tempos ele deixará para a História?


Gilmar Fraga: Grande timoneiro. Charge publicada em Jornal GaúchaZH em 19/03/2020.


(1) A pintura é atribuída erroneamente na internet ao seu irmão, Louis-Auguste. A autoria pode ser comprovada em: DIAS, Elaine. Artistas franceses no Brasil: descrição e promoção de sua imagem na imprensa do século XIX. MODOS. Revista de História da Arte. Campinas, v. 3, n. 2, p. 126-143, mai. 2019. Disponível online.
(2)  KODAMA, Kaori et al. Mortalidade escrava durante a epidemia de cólera no Rio de Janeiro (1855-1856): uma análise preliminar. Hist. Cienc. Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 19, supl. 1, p. 59-79, dez. 2012, p. 62. Disponível online.
(3)  Ibidem.
(4) FRIEDLAENDER, Walter. Napoleon as “Roi Thaumaturge”. Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, v. 4, n. 3/4, abr. 1941 – jul. 1942. Disponível online. Ver também: BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o caráter sobrenatural do poder régio França e Inglaterra. Companhia das Letras, 1993
(5) CHRISTO, Maraliz de Castro Vieira. A pintura de história no Brasil do século XIX: panorama introdutório. Arbor, v. 185, n. 740, 2009. Disponível online.

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