A arte em tempos de Internet

Nunca se teve tanto acesso às obras de arte como hoje. São bilhões de imagens à nossa disposição, dos artistas mais celebrados aos mais ínfimos. Cada dia traz um lote de descobertas que, antigamente,  ninguém, nem mesmo o maior especialista podia conhecer, e nem mesmo o maior banco de dados em suporte físico dos grandes institutos internacionais de pesquisa, podiam oferecer.



Henri Prost - Pôr do sol - Pastel - Prost foi arquiteto e urbanista de importância. Sua obra como pintor, ou pastelista, é quase ignorada.



Os jovens pesquisadores de hoje não têm ideia do trabalho exigido para se completar um mestrado ou doutorado há não mais que vinte anos. Referências visuais, citações, exigiam tantas vezes complicados deslocamentos geográficos, longa espera em troca de cartas com instituições e bibliotecas, horas de busca em fichários e elencos, dificuldades e custos para obter reproduções, muitas por xerox de lamentável qualidade.

Nestes tempos de confinamento, os museus abriram, com maiores facilidades, as suas portas virtuais. As salas podem ser vistas em seu conjunto, ou as obras podem ser isoladas. Há possibilidade de atingir detalhes ínfimos.



Detalhe de Hans Holbein - Os Embaixadores - 1533


Assim, nunca foi possível olhar obras, em quantidade e e tantos modos diferentes, como agora. A internet mudou nossa percepção e o conhecimento que podemos ter delas.

O visitante da National Gallery, em Londres, que queira ver O casal Arnolfini, de Jan van Eyck, mesmo em momento de sorte, quando o amontoado de gente permita que ele se aproxime, dificilmente poderá perceber as delicadas laranjas perto da janela




e menos ainda as cerejas, mostradas por uma fresta


Em casa, com a ajuda da internet, vemos tranquilamente, mais, e melhor.

Jan van Eyck - O casal Arnolfini - 82,2 cm × 60 cm

O painel de van Eyck foi certamente realizado com ajuda de lupa, e sem dúvida, destinado a ser explorado também com uma pelo espectador. No museu não podemos fazer isso. A internet o faz para nós.

Ah, mas não é o original, alguém vai dizer com razão. Não é o objeto verdadeiro, the real thing.

Não é. Mas há realidades que os historiadores da arte conhecem perfeitamente, desde sempre.

1) Não há ser no mundo capaz de ver os originais de todas as obras.

2) Vemos, examinamos os originais, por um tempo infinitamente menor do que aquele empregado trabalhando sobre as reproduções. A fotografia foi, de um ponto de vista prático, mas também metódico e epistemológico, a grande definidora da história da arte no século XX. Os historiadores da arte trabalham com reproduções. O público em geral também tem mais contato com reproduções do que com originais. Quem  cola um poster de Giorgione ou de Mondrian na frente de sua cama passa mais tempo contemplando a obra do que o próprio diretor do museu em que ela está contempla o original.

Atlas Mnemosyne, composto por reproduções, na biblioteca de Aby Warburg

3) Só com reproduções é possível empregar um método comparativo, sem o qual o estudo das obras de arte se empobrece de modo considerável.



 Afinidades: duas páginas de ilustração no "Viatico per cinque secoli di pittura veneziana", de Roberto Longhi. Se fossem reproduzidas em frente e verso, a evidente relação entre as duas obras não seria perceptível. Uma está na Sicília, outra no norte da França. A relação só pode ser comprovada pela concomitância das fotos.


Alguém pode retrucar: - Ah, mas as cores nunca variam nas reproduções e no original eu vejo o aspecto verdadeiro.

É preciso lembrar um ponto. Nunca percebemos duas vezes da mesma maneira. Não apenas porque nosso estado de espírito e nossa atenção está em constante movimento. Mas porque uma obra não tem o mesmo aspecto conforme é exposta ou iluminada. Quando é fixa, como nas pinturas murais, salvo se tiver iluminação artificial, o que já significa perturbação, modifica-se conforme a luz se modifica lá fora. Ou seja, os originais também não são estáveis. Sem contar as restaurações e a ação do tempo sobre elas. 

Há, sem dúvida, dificuldades na reprodução das artes do relevo. E também a mudança de tamanho entre o original e a cópia. Ainda assim, a reprodução faz parte da obra.

O texto de Walter Benjamin A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica fez muito para o desprestígio das reproduções. Sua expressão de efeito - perda da aura - teve, e tem, enorme sucesso. Seu pensamento, complexo, profundo, intrincado, mergulha-se num sentimento romântico e nostálgico por um passado em que os originais sustentavam-se na pureza de sua unicidade. Benjamin instaura uma fetichização do original. Ele compartilha, com a Escola de Frankfurt, a condenação da cultura de massa. A grande inteligência e o prestígio fazem com que esses pensadores continuem admirados e aceitos por muitos, ainda hoje. Com razão. Porém, é preciso percebê-los com cuidado, sem nos deixarmos levar pelos sedutores anátemas que eles praticam.


Johann Zoffany - A tribuna dos Uffizzi - 1776

Proust foi um autor profundamente amado por Benjamin. Sua concepção sobre a natureza da arte é, porém, oposta à de Benjamin.

Proust não teorizou sobre a obra de arte. Mas é fácil extrair de seus escritos - sobretudo os literários -  alguns pontos que voltam com insistência.

1) A obra de arte se situa no espírito do espectador. Ele reuniu no passado, e continua reunindo no presente, experiências sensíveis e conhecimentos que instalam a obra dentro de si. Ela é constituída pelo o conjunto que resulta de reproduções, descrições, evocações - e também de originais. Mora na memória do espectador - memória intelectual e sensível, é claro. 

2) Os originais estão longe de serem melhores do que as reproduções. Quando o narrador de Em busca do tempo perdido descobre a verdadeira estátua da Virgem de Balbec no portal da igreja, decepciona-se: ela é muito inferior à Virgem de Balbec que ele havia construído em seu espírito, graças à reproduções e leituras diversas. 

3) A semelhança fortalece e dissemina a obra de arte pelo mundo. Swann apaixona-se por Odette porque ela se parece com a Séfora de Botticelli. É importante lembrar que Proust nunca viu a pintura original: ele conhecia apenas uma reprodução de uma cópia feita por Ruskin. No entanto, a Séfora de Botticelli incorporara-se em Odette. 


John Ruskin - Séfora - fotogravura de um desenho de Ruskin a partir de Sandro Botticelli. Ilustração do livro "Val d'Arno", de Ruskin, vol. 23 de suas obras completas, 1903-1912. Ruskin certamente não fez esta cópia diretamente do original, na Capela Sixtina, mas de uma foto do original. Esses filtros, ao invés de distanciar o espectador do original, tornam-no mais presente e mais sólido.

4) Para Proust, quando as reproduções têm uma dimensão artística, como uma gravura, ou pintura, que copia uma obra, a arte está presente no ato do criador e do copiador.

No entanto, todos sabemos que os originais exercem sobre o espectador sua força mágica. Proust faz o escritor Bergotte morrer diante de seu quadro amado, A vista de Delft, por Vermeer, buscando, nele, o detalhe que o fascinava: o pequeno pedaço de parede amarela (que os especialistas quebram a cabeça para descobrir qual é).


Johannes Vermeer - Vista de Delft - 1660

Essa aura do original, que existe efetivamente, depende do espectador, daquilo que ele investe como crença na obra que contempla. Não é intrínseca ao objeto. Nós ouvimos com grande prazer o canto de um pássaro. Aproximamo-nos da janela e vemos que se trata de um hábil imitador assobiando na rua: imediatamente nosso prazer se esvai. Este exemplo de Kant é confirmado por um dado muito mais prosaico. Uma obra de um grande mestre vale milhões. Descobre-se que ela é falsa: pronto, o mercado encarrega-se de objetivar, no âmbito financeiro, a decepção sentida. E, para quem não se importa com arte, ou a ignora, a obra pode reduzir-se apenas à sua realidade imediada: um pouco de tela pintada, ou um objeto de bronze que rende dinheiro ao ser vendido como metal. Para estas pessoas, a mais fabulosa obra-prima não possui aura alguma.


Falso Modigliani pintado pelo célebre falsário Elmyr de Hory em 1963

No entanto, essa aura que atribuímos aos originais, e que os valoriza perante nossos olhos, está em todas as coisas.

Pensei nisso ao assistir A última loucura de Claire Darling, filme de Julie Bertuccelli de 2018. Claire Darling é muito rica. Mora em uma velha casa cheia de objetos que se acumularam com o tempo. Sem mais aquela, decide fazer uma venda de garagem, com preços vis. Esvazia a casa, desloca os objetos para o seu jardim. 





O filme se perde numa história melodramática, o que é pena. Chiara Mastroianni tem grande presença, e sua mãe, Catherine Deneuve, aos 76 anos, crève l'écran. Nos momentos em que a diretora centra-se nos objetos, consegue passar a poesia das coisas vividas e amadas. Ao que parece, a velha casa é pertence à família da cineasta.

Como as obras de arte, os objetos possuem uma aura. Mesmo os mais corriqueiros tornam-se significantes se, por alguma razão, nós os amamos. A arte da natureza morta não se engana. É a grande reveladora dos sonhos contidos nas coisas.


Possivelmente Lubin Beaugin






Objetos pessoais, guardados com carinho afetuoso, tornam-se dolorosamente vazios quando seus donos morrem. Quem já teve que mexer nos pertences deixados por algum ente querido, sabe como essa tarefa é difícil, em grande parte porque não temos o poder de entrar na mesma sintonia que eles mantinham com seus antigos proprietários.

É desse modo que uma reprodução de obra de arte - para voltar ao exemplo, aquele poster de Mondrian ao pé da cama e que teve uma tiragem de milhares - pode ser sentida como única, porque ele alegrou uma vida: é este poster, preciso, nenhum outro. 


Piet Mondrian, 1930 - Composição em azul, vermelho e amarelo


Proust não possui o fetichismo material do objeto. Quando destaca algum, é para significar outra coisa: assim, a condecoração de Saint-Loup, a Croix de Guerre, suprema recompensa do heroísmo, é esquecida num bordel masculino, denunciando a contradição do homofóbico aristocrata. Ou o vaso chinês que o narrador vende sem escrúpulos para financiar uma conquista amorosa.

Basile Lemeunier - Retrato de Édouard Detaille em uniforme de sub-tenente do 20º  regimento de caçadores. (1896)



A leitura de Bachelard nos faz perceber a força secreta das coisas. "No reino dos valores, a chave mais fecha do que abre. A  maçaneta mais abre do que fecha. E o gesto que fecha é sempre mais nítido, mais forte, mais breve do que o gesto que abre." (A poética do espaço). É ele também quem nos ensina: bem ver não basta. É preciso bem sonhar. (A terra e os sonhos da vontade).



René Magritte - A explicação - 1952











Comentários

  1. Caro professor,

    Penso que Adorno, em sua crítica sobre a arte no século XX, teorizou não ser possível mostrar a pessoas imersas em uma cultura industrializada a noção de expressão artística verdadeira.

    E que essa incapacidade de entender ou de se encantar com uma obra de arte seria o resultado da mercantilização da arte.

    Ele defendia a preservação de uma obra de arte a partir do distanciamento do processo de reprodução em série dessa obra.

    Ao contrário de Benjamin, me parece que Adorno vê nisso uma perda irreparável.

    Será que essa “globalização” da arte em tempos de Internet não é um risco para uma perda da essência de uma obra de arte?

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  2. Cara Renata
    Arte não é númeno, é fenômeno.

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