Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução I - A unidade num século que se modifica

 Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução I

Tradução de Jorge Coli


Cada época da arte tem sua fisionomia própria , fortemente desenhada nas memórias. O trabalho do tempo acusa e simplifica os traços, e a sucessão das eras é semelhante a um cortejo de seres vivos reconhecíveis graças às características, a uma expressão, a uma postura. A posteridade os pinta como retratos, com fortes luzes e fortes sombras, e é com essas poderosas evidências que se faz, não o que chamamos história, mas consciência histórica coletiva. O século das catedrais, a primavera e o verão da Renascença, a época clássica, o século XVIII se impõem a nós, não como puras ficções cronológicas, mas como conjuntos concretos, orgânicos, dotados de vida. Sem dúvida, as gerações se dão as mãos e se ligam umas às outras. Há transições e prolongamentos. Um século não nasce, não morre, de uma vez só. A humanidade não vive por sacolejos seculares. Um estrito espaço de cem anos nada significa. No entanto, de um século ao outro, mesmo levando em consideração algumas permanências, essas franjas pelas quais uma geração liga-se ao que a precede e ao que a sucede, que diferença e por vezes, que oposição destacada na tonalidade moral, que surpreendente diversidade de resultados!

O século XIX pode ser considerado como um todo. Seu irmão mais velho, o século XVIII,  vive ainda diante do fundo das disciplinas que a França cartesiana instituiu. Apesar da riqueza de suas nuanças, a Idade Média parece um bloco. O século XIX é uma época nele próprio, época tão cheia, tão variada, tão profunda, tão tumultuosa que, com suas ruinas e de seus ecos, poderíamos mobiliar várias outras. Ele sai da Revolução, ele expira na guerra universal. Entre esses dois limites, que são ao mesmo tempo conclusões e começos, não cessou de inventar. Seus costumes, suas línguas, suas obras-primas, pertencem-lhe. Napoleão se gabava de ter conjurado o terrível espírito de novidade que ameaçava o mundo. Talvez ele o tenha fixado, paralisado na armadura de algumas instituições civis, mas nas artes, nas ciências, nas letras, no pensamento elevado, nas formas moventes da vida, o século lhe escapa e o ultrapassa com uma fogosa precipitação. Essa experiência ofegante que é a Revolução, ele a seguiu em todos os domínios, galvanizando tudo, mesmo os mortos. Nenhuma idade fez tanto para engrandecer o homem. Sobre a natureza, ele descobre mais em cem anos que as vinte gerações que o precederam. Ele arranca do anonimato o Egito, a Caldéia, a Assíria, a China. Ele alarga, multiplica o poder da indústria humana, equipa uma nova era. Convulsiona as condições da vida em sociedade, não por modas ou estilos, mas remexendo nas bases profundas, por revanches contra a lei da gravidade, por abreviações do espaço e do tempo. A descoberta da terra, inaugurada pelos velhos navegadores, ele a completa e a leva a seu termo. Se não cria as nacionalidades, ele as ressuscita. Alastra em todos os lugares a raça branca. Desperta, na Ásia, povos de uma extraordinária longevidade e de uma audaciosa juventude. Determina, através do mundo, imensas correntes de trocas e de influências que a humanidade teria acreditado, há pouco, sacrílegas e impossíveis.

Suas grandes datas, seus pontos críticos são, ainda, revoluções, não políticas apenas, mas que tomam sua geração por inteiro. Nunca a vida pública foi tão agitada, nunca ela prodigou mais excitações ao pensamento. Cada regime, caindo, carrega uma parede da velha sociedade e deixa ver os esboços da nova. Audácias criadoras, umas se perdem nos devaneios líricos dos romances sociais e conciliábulos de revoltas, - as outras, tomam corpo e se apoderam secretamente da Europa e dos continentes. Do convento de Ménilmontant¹ os Saint-Simonianos descem, com bandeiras e cânticos, depois se espalham pelo mundo, criam os bancos modernos, os canais interoceânicos, as estradas de ferro, as exposições universais e o Segundo Império.


O "convento" dos Saint-Simonieanos, número 145, da rua de Ménilmontant.

O homem que nasce com o século e que morre depois da proclamação da Terceira República² viu a França trocar dez vezes de regime. Se é um letrado, conheceu em sua verde novidade os clássicos do Império e os primeiros simbolistas. Se é pintor, pode medir a distância entre um retrato de David e um retrato de Manet.

Suzanne Le Peletier de Saint-Fargeau,
Jacques-Louis David, 1804.

Édouard Manet - 
Berthe Morisot com um buquê de violetas - 
1872


entre uma paisagem de Bertin e uma paisagem impressionista,


Jean-François Bertin - Paisagem - 1804

Claude Monet - As papoulas - 1873

e, no intervalo desses casos extremos, ele viu se sucederem não transições comedidas e modeladas suavemente numa harmonia em fusão, mas expressões violentas e nítidas, escolas travando combates como coortes de insurretos. O século ressoa com um perpétuo rumor de batalha. Poderíamos ser tentados de acreditar que essa atmosfera esfumaçada é asfixiante para o poeta, para o artista, para o pensador. Ela os estimula. Há desordens que são apenas agitação estéril e caos convulsivo, mas os estremecimentos do século XIX, sacudindo o homem até o fundo, despertando nele suas inquietações, esfaimando sua curiosidade, exaltando sua febre, suas nostalgias, suas paixões, fizeram dele uma das personalidades das mais estranhas e poderosas, nessa longa história de retratos que é a história moral da humanidade.



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¹ Ménilmontant era um subúrbio popular de Paris (hoje integrado na municipalidade). Ali formou-se um núcleo de saint-simonianos, voltados para um socialismo planificador, que aderia às novidades industriais e modernas.

² Em 1870.



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