Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução II - As pulsões que unificam um século

 Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução II - As pulsões que unificam um século

Tradução de Jorge Coli

O homem do século XIX, o francês do século XIX é, como seus pais, capaz de vivacidade, de espírito, de fantasia, de confiança, de esperança; mas esses movimentos de sua sensibilidade possuem algo de mais nervoso e de mais ardente que outrora. Essa grande alma está perpetuamente inquieta. Uma tristeza a obceca. Ela lhe oferece o próprio nome dessa época, - o mal do século, - melancolia, não seca ou malsã, mas embriaguez criativa também. Toda medida é estreita para ela; sem cessar, tende ao ilimitado; o herói que ela construiu, o "pensador", não é o homem que raciocina, mas o sonhador e o vidente. Ele parece banhado com as chamas e com a noite de um crepúsculo eterno, a luz que lhe acaricia a fronte não é a alvorada da serenidade, mas o clarão de um sonho. Mesmo os mais puros e mais altos dentre os mestres, Prud'hon,


Pierre-Paul Prud'hon - Estudo de nu - 1800

Chassériau,

Théodore Chassériau - Autorretrato - 1835

Puvis de Chavannes,

Pierre Puvis de Chavannes - O sonho - 1883

são tocados por esse raio melancólico. Ele brilha com uma doçura triste e séria sobre o rosto dos amigos reunidos pelo pintor das afinidades eletivas, Fantin.

Henri Fantin-Latour - Um canto de mesa - 1872



Henri Fantin-Latour - Homenagem a Delacroix - 1864



Ao mesmo tempo, dir-se-ia que o habitante dessa era singular tem o pressentimento e a impaciência de um destino sobre-humano, de um futuro com proporções colossais, como o Paris dos Saint-Simonianos sonhado por um deles, Charles Duveyrier. O futuro e o passado lhe parecem igualmente povoados de mistérios e de maravilhas. A Idade Média tal como ele a concebeu é incoerente, obscura, pululante, enorme, cheia de estranhos monstros e catedrais desmedidas.


Victor Hugo - A catedral de Reims - 1836 circa

A regra de ouro das civilizações clássicas parece-lhe uma invenção de academia e, quando se apodera da Grécia, despeja nela a Ásia, colore-a de tons crus, de ornamentos caprichosos e selvagens, descobrindo nela, com alegria, um vestíbulo de arcaísmo onde se erguem ídolos enigmáticos.


Gustave Moreau - Os pretendentes - 1860/1898

Tem pressa em reconstruir de uma vez só o edifício das velha culturas, e acumula os blocos. Só ele é capaz de manejá-los, pois tem braços fortes, nobreza de coração e o sentimento de sua missão. Crê no homem, não como receptáculo do pensamento, mas no homem por inteiro: temperamento, natureza, indivíduo, paixão, eis as palavras que lhe são próprias, e não espírito ou razão. Acredita no gênio, revela a ele sua vocação, isolamento e infelicidade. Restaura os monumentos do catolicismo, mas para elevar ali altares ao deus desconhecido. Acredita no povo, não como em uma classe, mas como em um elemento.


Théodore Géricault - A balsa da Medusa - 1819


Honoré Daumier - Imigrantes - 1855

Acredita na natureza, não como no cenário da inteligência, mas como no deus Pan. Acredita na arte, não como num prazer de escol, mas como num novo universo.

É que ele viu tudo pelas leis dessa perspectiva dos visionários que decupla as proporções e que faz recuar os longínquos, e nós não podemos recusar-lhe de ter criado, com grandeza, suas cidades, suas obras de arte, os monumentos de seu pensamento. A Itália do século XVIII foi a primeira anunciadora de seus sonhos pela ressurreição formidável de Roma em preto e branco, com Piranesi.



Giovanni-Battista Piranesi - Frontispício alegórico de Roma e sua história, de ;Le Antichita Romane (1756); edição francesa de 1835.

Ele, o século, retoma e transfigura tudo o que o classicismo ignorou de imenso, a Bíblia,


John Martin - A Sétima Praga do Egito - 1828

Dante,

Eugène Delacroix - A barca de Dante - 1822

Shakespeare.

John Everett Millais - Ofélia - 1852 


Ele, o século, ressuscita a epopeia, porque possui dela o sentido e o dom, a heróica familiaridade, as proporções gigantescas, as luzes violentas e as sombras maciças, a paixão do movimento e da vida, aliada ao respeito do mistério, ao religioso horror. Seus historiadores são espécies de enciclopedistas épicos. Michelet desce às criptas do passado, e sua tocha ilumina, com um clarão perturbador, dançante, inflamado, os mortos que suas encantações ressuscitam. Taine construiu uma Inglaterra que talvez seja falsa, mas magnífica de cor e de violência. O próprio Renan, no anoitecer do século, com essa mistura de encantamentos celtas e ceticismo crítico, vê por meio de largas massas e compõe em afresco seu Israel e suas Orígens. No plano da vida moderna, é o mesmo sopro, são os mesmos pulmões de aço. Uma espécie de Homero noturno ergueu esse edifício colossal,  A Comédia Humana, cheia de sonhos extraordinários e de extraordinárias verdades, dicionário inesgotável das paixões do homem, arquivos de uma sociedade verdadeira e de uma sociedade por vir, que o Segundo Império, esse outro romance, realiza. A Inglaterra tem Dickens e sua obra, epopeia vista pela lupa, e feita de parcelas; depois Kipling, poeta do europeu em suas lutas para além dos mares. O naturalismo francês tem a amplidão das proporções, a potência típica, os processos de acumulação, o movimento das multidões. Na Russia, o realismo místico extrai do homem que passa o santo de igreja e o profeta dos mistérios eternos. A Espanha enfim desperta e se recompõe em vastos romances cíclicos. Em música, Beethoven, Berlioz, Wagner são épicos pela amplidão, pelo movimento de uma vida profunda e múltipla, pelo largo sentimento das massas sonoras, pelas forças expansivas, pela envergadura da ideia que se fazem do homem.

Não nos enganemos, a ideia que o século se fez da ciência é da mesma ordem. Jamais concebeu a pesquisa positiva, o trabalho de laboratório, como negadores do alto pensamento, da vida espiritual. Ele se entregou religiosamente a isso, e mesmo as formas abruptas e frias da atividade científica, ele as esposava com fé. A história de seus progressos nas ciências é cheia de grandes vidas incandescentes, solitárias, de um porte monástico. O Discurso do Método do século XIX foi escrito por um homem que morreu como pontífice de uma religião nova. Mesmo nas ciências históricas, reformadas pela crítica positiva, as direções permanecem filosóficas. A filologia, como a entendem Bournouf, Renan e Michel Bréal, é um ensaio para definir a alma humana. A data de Quarenta-e-Oito, essa aresta na qual o século se dobra, não o quebra. Os homens que haviam esperado tudo dos poderes da imaginação, da majestade do verbo, mudaram de método, não de convicção; modificaram a liturgia sem tocar na fé. Não se deve representá-los decepcionados e renunciando, passando de uma vez só das formas ardorosas, efusivas, da subjetividade, ao estudo implacável e glacial daquilo que é. Flaubert e Leconte de Lisle pertencem por inteiro aos ardores de seu século. Zola, romancista experimental, continua Eugène Sue e a tradição do romance épico. O estudo e a transfiguração do "moderno" não são a contribuição nova de uma geração. Hugo, Balzac, Delacroix e Daumier tiveram fé na pintura das coisas contemporâneas e ousaram calorosamente antes de Goncourt e Manet. A variedade dos tons e das naturezas, num século tão rico de indivíduos, nada retira de sua unidade.






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