Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução - Fim - A geografia da pintura no século XIX.
Tradução e ilustração - Jorge Coli
O equilíbrio das forças européias e ds grandes escolas não é o mesmo de outrora. Antes, a Renascença tinha espalhado em todos os lugares o culto do gênio mediterrâneo e a admiração das forças da arte inventadas pelo paganismo. Às velhas tradições nacionais do Ocidente sempre vivazes, substituiu-se um mundo de empréstimos, assimilados e tratados com maior ou menor originalidade pela Flandres, pela França, pela Espanha e pela Alemanha. A Itália, pela irradiação de sua arte, tinha quase obtido a unidade da cultura européia. Ela era, não apenas terra de eleição, o venerável domínio das grandes lembranças, mas o centro da ação, o lugar de onde partiam as forças vivas. O declínio de sua originalidade criadora lhe deixou seu prestígio, ela continuou muito tempo a atrair as peregrinações de artistas. A contra-reforma e o academismo bolonhês tendiam a estabilizar a língua universal da arte. Mas essa disciplina não abafava o gênio dos grandes povos. Oferenciam-lhe o movimento e o relevo que seus instintos reclamavam. Enquanto a Itália se afastava do estilo, cedendo à sua italianidade,
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Il Guercino - Et in Arcadia Ego (1618) |
o "classicismo" na França traduzia, não empréstimos, mas a medida da raça e a harmonia do momento.
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Nicolas Poussin - Et in Arcadia Ego - 1628 |
A Flandres, esparramada numa servidão feliz, fazia derramar por um excesso de seiva e de ardor, seu romanismo de há pouco.
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Peter Paul Rubens - O Rapto das filhas de Leucipo - 1617 circa |
A Holanda protestante, republicana e burguesa, escapando à ascendência de influências meridionais, pintou-se, pintou sua vida, suas paisagens, suas cidades, seus habitantes, em traços estudiosos, eruditos e ternos
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Johannes Vermeer - Rua em Delft - 1657/8 |
- e, no entanto, de um fundo de solidão ou de gueto, Rembrandt lhe modelava uma outra alma.
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Rembradt van Rijn - Os síndicos da guilda dos tecelões - 1662 |
A Espanha era revelada a si mesma por um melancólico fidalgo de Castela¹,
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Diego Velázquez - O aguador de Sevilha - 1620, circa |
e por um grego nômade
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El Greco - Anunciação - 1600 circa |
e, na terra italiana, nessa nova Espanha que é o reino de Nápoles, encontrava alguns de seus ardores mais sombrios.
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José de Ribera - San Jeronimo - 1634 |
Para todos esses países, o século XVII é aquilo que haviam sido o século XV e XVI para a Itália, um período de florescimento, uma tomada de consciência de seus dons. Mais tardia, a Inglaterra não se revelará a si própria a não ser no século XVIII.
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William Hogarth - Os humores de uma eleição (1754/55) |
A última tentativa de unidade, a última palpitação do paganismo, é o renascimento arqueológico. Mas as nacionalidades, liberadas e estimuladas pela revolução, fortificadas em sua fé patriótica pela pela luta contra o Império no seu declínio, tendem a reutilizar cada vez mais seu ideal próprio. Elas conseguem? O grande século das nacionalidades é o grande século das grandes escolas nacionais? Despertando a atenção sobre o passado das pátrias, sobre os anais da Idade Média, sobre seus costumes, sobre seus monumentos, recolhendo e interpretando os elementos esparsos de cada folclore, levando à luz, pela primeira vez, o encanto e o interesse da arte popular, o romantismo faz cada povo tormar posse de sua antiga herança, revela a ele suas tradições antigas, sólidas e largas, cria-lhe deveres e lhe oferece disciplinas, Nações que haviam sido muito tempo apenas imitadoras, recomeçam a serem focos de cultura original. As pátrias que não foram completamente libertas e que aspiram à unidade, vêm nos vestígios antigos e nas promessas de sua própria arte a manifestação de sua consciência mais alta, da estreita união de seus elementos, o signo de sua dignidade, o poder espiritual que legitima e que deve consagrar suas ambições. Grupos novos, se não escolas propriamente ditas, tomam lugar pouco a pouco na história da pintura. Os países do norte têm seus pintores, que são deles.
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Christen Købke - O transepto da catedral de Århus - 1839 |
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Thomas Cole - O último dos Moicanos - A morte de Cora - 1826 |
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Jozef Izraëls - Família de camponeses à mesa - 1878 |
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Anselm Feuerbach - Ifigênia (1ª versão) 1862 |
A França do século XIX é admirável pela constante alacridade de seu gênio, pela fecundidade de suas contribuições novas, pela qualidade dos mestres que as revelam e impõem. É privilégio de certas épocas e de certos povos de engendrar homens e obras visíveis de todos os pontos da terra e que dominam os séculos: assim a França do século XIII, a Itália da renascença, a Espanha, Flandres e Holanda do século XVII, a França do XVIII. No século XIX, é ainda na França e é também na Inglaterra - a Inglaterra de Turner e de Constable, - que é preciso buscar as personalidades heróicas. É ali que estão os grandes inventores. Cada um deles enriquece seu país e a humanidade, não de uma homenagem a mais à tradição, mas de uma interpretação inédita da vida, e também de uma nova língua, mais flexível, mais rica, mais penetrante: a arte, com efeito, não é uma troca de puras ideias e de puros sentimentos numa língua qualquer que lhes serve simplesmente de veículo, é, em primeiro lugar, essa própria língua. Esse grande século de idealidade é século de tecnicidade. A antiga noção de técnica, tal como podia ser concebida nos ateliês flamengos e nas academias bolonhesas, coleção de preceitos, práticas e de "segredos", que tinha, reconheçamo-lo, o alto mérito de impor uma honestidade e um rigor de base mesmo aos talentos mais medíocres, ele a quebra para flexibilizá-la, ele a associa à vida profunda do indivíduo, ele a faz, de algum modo, jorrar, incandescente, dos mistérios da atividade espiritual, ele a afirma por atalhos os mais audaciosos. O ensino escolar definha. Os grupos se constituem por afinidade, de maneira casual e confusa. Mas nada limita ou diminui o dom criador dos mestres.
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Edgard Degas - Jovens espartanos se exercitando - 1860 circa |
pertencem ao mesmo tempo à tradição e à modernidade de suas artes.
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¹ Suponho que Focillon tenha empregado Castela como sinônimo de Espanha, porque Velázquez era sevilhano (assim como Murillo). Zurbarán era de Badajoz.
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