Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução IV - Arte "mediana" e século da arte.

   Henri Focillon - A pintura no século XIX - Introdução IV - Arte "mediana" e século da arte

Tradução e ilustração - Jorge Coli


Talvez essa arte [mediana] tenha existido sempre, particularmente na França, na época clássica, depósito precioso, em fim de contas, de certos velhos hábitos de classe e de raça, de certos gostos muito antigos que não variavam, enquanto a moda impunha à elite, à corte, à monarquia desconcertantes contribuições exóticas. Na sombra da história, as velhas corporações continuavam assim a labutar conscienciosa, obscura e, por vezes, encantadoramente, para o prazer honesto das antigas famílias da pequena burguesia... Mas, no século XIX, tudo é batalha. As classes médias, tendo chegado ao termo de sua longa ascensão, as comunidades provinciais conservadoras, pertencem à escola do bom senso. Alguma coisa do gosto clássico, no que ele tem de restritivo, subsiste entre os sapientes, mas envelhecido, mas debilitado, soando uma nota vulgar. Fortificou-se pelo prestígio das instituições do estado e consagrações oficiais, pouco dispostas a tentativas e audácias. Tomam distância, ou aversão por homens que nunca têm opiniões medianas, mas que correm instintivamente aos extremos. O respeito à ordem estabelecida repugna à inquietação e à novidade. Estimam o verossímil, o ponderado, o anedótico, o sentimental e o bonitinho. Gostariam que a arte fosse diretamente útil à melhora dos costumes e à educação das massas, mas em conformidade com as instituições e com os hábitos do momento. O critério do julgamento estético é, para eles, a habilidade da execução, pois o artista é, antes de tudo, um executor, homem de receita e de prática e, por aí, estão de acordo com o exemplo que vem apoiar a definição do artista nos velhos dicionários franceses: "É preciso ser um grande artista para preparar o mercúrio". Admirável exemplo, entre parênteses, da evolução de uma palavra.

Assim, ocorre que na Europa do século XIX, há uma arte intermediária que não é nem "grande arte", nem "arte popular". É quase impossível não defini-la como uma atenuação ou um reflexo. Quando uma escola envelhece e é suplantada por uma nova, então o público aceita seus detritos, suas imitações enfraquecidas, suas arestas aparadas. É aqui que vemos bem o que distingue a ciência da arte: a ciência não tem o que fazer como afirmações integrais, sistemas, escolas, ela se enriquece de experiências e descobertas sucessivas, filtradas, apuradas pela crítica e que se encadeiam umas nas outras, enquanto a arte não se enriquece e não progride, renova-se inteiramente, por vezes de um modo agressivo, sobretudo num século de curiosidade impaciente, sedento por novidade, sacudido por revoluções em que cada indivíduo aquinhoado se afirma a si próprio como seu próprio chefe. As concessões, os arranjos ecléticos, as fórmulas conciliantes caem no domínio público e cessam de pertencer à vida ativa. É necessário, no entanto, de levá-la em conta, na economia geral do século, como elemento de sua história moral, e deve-se reconhecer que existam, entre os neutros, almas encantadoras, e talento em regiões moderadas.

A enorme produção da época é um traço notável e, o que não o é menos, é a extraordinária difusão da cultura artística. Tem talvez sua origem nesse fato, importante por outros títulos ainda para a história das artes, a criação dos museus.


Louis Béraud - A sala das sete lareiras no Louvre, visa a partir das salas das jóias - 1910

Que obras numerosas e belas tenham sido reunidas pelos príncipes e pelos amadores, que eles tenham aberto seus gabinetes ao público, não contestamos, mas entre uma coleção particular, mesmo largamente accessível, e um museu, há uma diferença essencial. Este último é uma instituição pública, faz parte de um sistema, não como luxo, não como um a mais, mas como núcleo de educação coletiva. E, por outro lado, nesse século agitado por ilustres controvérsias, a imprensa, que se tornou quotidiana e que se espalha em todos os lugares, as acolhe e comenta os ecos. As observações da crítica não são mais destinadas a um círculo restrito; são postas diante dos olhos de milhares de leitores. A segunda metade do século assiste multiplicarem-se as exposições. Nas grandes reuniões da indústria e do comércio, as artes têm um lugar cada vez maior. As sociedades artísticas, os grupos mais ou menos estáveis pululam. Enfim, a história da arte se constitui, se espalha e se divulga, torna-se objeto de um ensino oficial, e a invenção da fotografia permite multiplicar, indefinidamente, barato, as infiéis reproduções das obras.


Narciso - pintura pompeiana - séc I a.C. - Foto Alinari, segunda metade do século XIX.



 A arte desce nas ruas e nas praças públicas sob forma de cartazes. 

Alfons Mucha - Pulicidade para Figaro Illustré - 1886
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Torna-se um meio de enobrecer os produtos mais vulgares e, por um estranho abuso de termo espirituosamente assinalado por Whistler, ela se estende a todas as coisas. 

Daí a profusão dos conhecimentos superficiais aliada a certo desregramento dos gostos, e na medida em que a pedagogia envelhece, o grande número de artistas amadores. Sempre houve espíritos curiosos, mas mal informados, ou de modo estreito, ou rápido, pouco a par dos mistérios, sobrecarregando-os. É talvez uma forma do liberalismo, por vezes tirânica e exclusiva: uma época muito rica e muito agitada favorecia naturalmente esses entraves, mas reconheçamos que, apesar dos exteriores que se prestam à sátira, ele não foi inútil. A moda, excitada pelo esnobismo, pode sustentar reputações efêmeras ou esforços sem alcance; ela pode também ajudar tentativas que a seduzem por sua audácia, mas que valem mais do que a própria audácia. Pode reparar injustiças e, na vasta produção de um século pródigo e que, mais saturado do que épocas menos férteis, deixa forçosamente de geração em geração uma perda residual considerável,  pode suscitar ressurreições merecidas. Da mesma maneira, a atividade dos "amadores" não é, de modo algum, um elemento negligenciável. Sem dúvida, ela é a característica das naturezas fracas, ricamente dotadas de qualidades inferiores, e era natural que, numa época em que a arte representa um tal papel, em que todo mundo fala de arte, quando é tão glorioso ser um artista, em que os dogmas se sucedem com precipitação, em que a liberdade de inspiração e dos procedimentos não é limitada por uma doutrina forte, muitos tivessem acreditado ou serem chamados por uma vocação imperiosa que não tinha necessidade de aprendizado e de disciplinas, ou qualificados para a prática de uma nobre distração. Mas ocorreu que esses amadores, por vezes, sentiam justo e que, não sendo paralisados por lembranças de escola ou necessidades profissionais, exprimiam-se com a mais sedutora ingenuidade.

A pintura é um dos domínios em que o século XIX se exerceu com maior império. A riqueza e a variedade dos meios que ela dispõe autorizavam as ousadias das tentativas e das novidades. Sua própria matéria, no que ela tem de flexível e de movente, é favorável a livres expressões: não é que o século tenha se caracterizado por formas incoerentes, desenfreadas, de liberdade, aqueles mesmos que se consagravam a manter a autoridade das velhas tradições magistrais estavam obrigados a emendá-las e modernizá-las. É notável que os "clássicos" dessa época, ou que passavam por tais, na realidade foram grandes revolucionários, Ingres,


Jean-Dominique Ingres - Júpiter e Tétis - 1811


David, entre os primeiros.

Jacques-Louis David - Mme. Récamier - 1800

Toda grande interpretação da vida se marca, talvez, em pintura mais forte e mais repentina que em outros modos. Quase que só a música é língua mais expressiva e mais expansiva: e ainda assim, ela está sempre submetida ao inderminado, ao indefinido. A pintura tem por si o concreto, o espaço, os volumes, o tom. As formas da arquitetura, estáveis e pesadas, são lentas em mudar. Os românticos esperavam muito dessa arte. Decepcionaram-se. Viram quase que só, com as grandes novidades da vida social, o imóvel de cinco andares, concebidos pelo Segundo Império, 


Charles Marvile - Boulevard Haussmann - 1870, circa



e as elegantes aplicações do ferro.

Victor Dutert e Fréderic Contamin - A galeria das máquinas - Paris - 1889


Quanto à escultura, ela sofreu profundamente a influência da pintura, o exemplo de suas composições, seus procedimentos de pôr em evidência e mesmo seus efeitos técnicos: os grandes escultores do século XIX, de Rude

François Rude - A partida dos voluntários de 1792 (A Marselhesa) - 1836

a Rodin,

Auguste Rodin -A porta do inferno - (1888 - 1917)


passando por Préault,

Antoine-Augustin Préault - A matança - 1834


Barye, 

Antoine-Louis Barye - Rogério e Angélica - 1844


Carpeaux.

Jean-Baptiste Carpeaux - O triunfo de Flora - 1873

são, talvez, antes de tudo, grandes pintores, pintores que usam as três dimensões do espaço, e só em nossos dias a escultura se esforça para encontrar sua própria lei... Pintura e gravura, quer dizer, pintura em preto e branco, bastariam por si só para construir o século, quer dizer, para dar dele uma imagem completa, não de ilustração ou anedota, mas profunda e forte.

Charles Meryon - Le petit pont - 1859




Nunca ela foi mais viva, se o próprio daquilo que vive é calor, cor e sobretudo movimento. Pode-se ficar tentado de lhe acusar não ter sabido basear-se na ordem e na serenidade, de ter buscado, sem cessar, quase doentiamente, a se renovar, a se ultrapassar. A pintura da Renascença também. A harmonia total, a conciliação dos contrários não passam de um breve milagre com Rafael. Mesmo se nos limitamos a uma cidade, a uma escola, a unidade do Quattrocento florentino é apenas um efeito de distância. O grupo mais coerente de todos, talvez, o grupo veneziano, está eriçado de variações. O próprio classicismo francês se buscou longamente, e a harmonia dessa evolução não passa, talvez, de ficção dialética. O século XVII contém ao mesmo tempo Rembrandt  e Poussin. Se nós constatamos entre os meios nacionais diferenças tão acusadas, devemos também aceitar as diferenças que separam as gerações. Cada geração do século XIX, sobretudo na França, pensa, sente, vê e faz sua arte, que lhe é própria. 
















 


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