Henri Focillon - A pintura no século XIX - Complexidade da estética revolucionária - O idealismo e a revolução - Fim
Henri Focillon - A pintura no século XIX
Primeira Parte
O retorno ao antigo e o início do romantismo
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Capítulo Primeiro
O idealismo e a revolução - Fim
Tradução e ilustração - Jorge Coli
Desse modo, a estética revolucionária não é unilateral, como seríamos tentados de acreditar, pensando no sucesso da doutrina de Winckelmann, à sua conformidade com as aspirações políticas e morais do espírito público. Face aos Jacobinos do sublime, há toda uma Gironda do ecletismo. Um homem, durante quase um século, representou a mania do antigo na estética e na pedagogia. Quatremère de Quincy, com os olhos fixos no Apolo do Belvedere
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A partir de um original de Leocares - Apolo - IV séc aC |
e no Laocoonte, atravessou as mais terríveis tempestades e morreu centenário. Nenhuma
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Baccio Bandinelli (1525) - cópia do Laocoonte, de Agesandro, Atenodoro e Polidoro (séc. I aC). Estado anterior à restauração contemporânea do original. |
aptidão histórica, mas essa espécie de vigor teimoso que constitui os doutrinários e os exalta ao pontificado. Os sentidos subordinados à razão, o indivíduo e o particular subordinados à espécie e ao geral, a natureza, não estudada em suas produções, mas em suas intenções, o retrato, o gênero, a paisagem banidos, os heróis representados não em suas aparências perecíveis, mas na essência de suas virtudes, enfim, o ensino das artes do desenho tornado conforme à geometria descritiva, tais são princípios de um sistema em que há mais ideologia que idealismo. O que não impedia esse intrépido gênio sacerdotal de cair em estranhas contradições já que, em suas Considerações morais sobre o destino das obras de arte, lidas no Instituto em 1806, mostrava-se pleno de paixão pela expressão viva e direta do sentimento e pelas qualidades espontâneas...
Mas, diante de um Quatremère, vê-se levantar personalidades muito sedutoras, bem mais ricas em nuanças e dotadas de um verdadeiro sentido histórico: Émeric David, Amaury Duval, fundador, com Ginguené, da Década¹. Para eles, arte é coisa que vive, a arte repousa, não em bases teóricas, mas no estudo atento da natureza e no aprendizado de uma técnica. Pertencem, um e outro, energicamente, a seu século, levantando a voz em nome de uma inspiração patriótica e moralizadora, nutrida de história nacional, tiveram o bom senso de protestar contra a alegoria e a mitologia a qualquer custo*.
As grandes desordens da sociedade, a novidade das emoções, o surgimento no primeiro plano de uma nova classe de amadores, as mudanças das instituições, enfim, a criação da mais notável de todas, os museus, deviam favorecer essa segunda tendência. Sem dúvida David destruiu a Academia para impor, sem contestação, a tirania do idealismo revolucionário. À velha instituição monárquica substituíram-se sucessivamente uma Comuna das Artes (1793), logo suspeita de moderação e dissolvida; o Juri nacional das artes, o Clube revolucionário das artes. Mesmo no Clube, em que dominavam David e seu grupo, havia oposição entre os idealistas puros e os liberais. Em 1796, é fundado o Instituto nacional, no qual as Belas-Artes, a partir de 1803, têm sua autonomia e dormem a quarta classe. Fato notável, o Instituto escapa a David. Os relatórios para os prêmios decenais assinalam Gros e Prud'hon². Nos arquivos do ensino público, a inflexível secura dos delineamentos em plombagina são dominantes, mas encontra-se, aqui e ali, algumas obras mais flexíveis, em que, apesar de Quatremère de Quincy e suas admoestações sobre o claro-escuro e seus "encantos perigosos", emprega-se o esfuminho para efeitos, para um modelado mais generoso e, mesmo, a quente, a brilhante sanguínea do século XVIII. A publicação de obras como a de Beaunier e Rathier, Recolho de costumes desde Clóvis até Napoleão I
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Prancha do Recueil des costumes depuis Clovis jusqu'à Napoléon I (1810-1813), |
fornecia documentos pitorescos para os pintores "nacionais" e dotava de um amplo guarda-roupa histórico os adversários do nu idealista e jacobino. Enfim, o gosto público foi sacudido em suas preferências e paixões pela própria violência da época. Na medida em que a autoridade foi se afirmando, em que ecoaram as vitórias republicanas ou consulares, na medida em que a desordem financeira do Diretório ajudava a reconstituição das grandes fortunas, a época reclamou uma arte brilhante e triunfal, feita da glória dos anais contemporâneos, desviando-se das austeridades do ascetismo revolucionário, com necessidade de profusão, de aconchegos e de volúpia. Gosta de contemplar a imagem dos heróis, de seus companheiros de armas, de suas sensíveis esposas, e a burguesia restaurada volta às suas preferências de ontem, as cenas da vida de família e as paisagens anedóticas. Quanto aos homens de ação, eles amam o que brilha e o que vibra. Se conservam sempre, no fundo de si mesmos, um gosto da moda pela iconografia heróica, as estátuas sem alma pintadas por um Suvée não os contentam mais.
Vão, por instinto, na direção de uma arte fastuosa, animada e, mesmo, colorida, que reflete e transfigura suas próprias aspirações.
O próprio Napoleão nos é testemunha disso. Esse terrível realista não se perdia. O homem que escrevia
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Pierre-Alexandre Vignon (e outros) - Igreja da Madalena, originalmente Templo da Glória do Grande Exército (1806) |
a Champagny³, a propósito do Templo da Glória, que "esse monumento, ligado à sua política, está na lista daqueles que devem ser feitos rapidamente", que fazia coincidir a abertura do Salon de 1810 com as festas oferecidas ao Grande Exército, que propondo encorajamentos e prêmios aos artistas, ditava esta frase aos seus funcionários: "Sua Majestade tem o direito de esperar que o gênio francês engendrará obras-primas", não era um Francisco I, que gostava das artes como conhecedor, diletante, grande senhor melhor informado e mais rico do que os outros. Era um político, fazendo das artes um instrumento de governo. Pensou muito nele próprio, mas pensou muito na França. Como Henrique IV, quis significar a nação nova por um novo urbanismo, por uma Paris dedicada às vitórias do império, como o grande projeto a dedicava às províncias vinculadas à unidade monárquica. Em pintura, preferiu o moderno e o francês ao antigo. Queria que David abandonasse seu Leônidas para voltar ao Império, à
França, a Napoleão. Além disso, é preciso dizer, como amador, como chefe de estado, ele tinha o gosto dos burgueses de seu tempo: aos pintores do ideal, sempre suspeitos de um velho jacobinismo, ele preferia os pintores de anedotas, o trabalho consciencioso de Robert Lefèvre
a habilidade com a qual Gérard conferia uma dignidade soberana à família e à corte imperiais. Mas o
lugar que ele concedeu a Gros
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Baron Antoine Jean Gros - Napoleão na batalha de Eylau - 1808 |
e a Prud'hon honra singularmente seu sentido crítico. Em volta dele, encontramos outros garantidores
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Pierre-Paul Prud'hon - A justiça e a vingança divina punindo o crime - 1808 |
de ecletismo, outros amigos da pintura: Fesch, colecionador desigual mas accessível e vasto, Luciano, apaixonado por espanholadas, Eugênio, homem bonito, herói de romança 4 e de romance, coração fácil e
sensível, cavalheiro francês, um dos lançadores do estilo troubadour.
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François Fleury-Richard - Valentina de Milão chorando a morte de seu marido, o duque de Orleãs - 1802 (exemplo precoce do estilo troubadour) |
Mas a grande força de liberdade, a mais poderosa lição de ecletismo, são os museus. Diga-se o que se
quiser, que é uma ideia do século XVIII, que em 1750 Lenormant de Tournehem 5 havia organizado no Luxemburgo uma galeria de 100 quadros (devolvidos às reservas em 1779). Foi a Revolução que criou, abriu e manteve os museus, foi o Império que os enriqueceu. David, primeiro, foi o mestre no Conservatório do Museum 6 e se soltou ali, condenando os "horrores", a escola francesa do século XVIII e os objetos de arte da mesma época, mas, depois de David e os continuadores de sua intolerância (que baniram do Louvre a estatuária italiana do renascimento), chegou Denon. Denon que não foi herói nem homem de gênio, e que se contentou em ser extremamente inteligente, cheio de espírito, de talentos e de luzes, administrador de um julgamento muito reto e muito firme, de um gosto muito aberto; Denon, escritor amável, de uma veia voluptuosa e ligeira, outrora tentado pela pintura e pela água-forte, tendo retido o suficiente para saber como as coisas são feitas, para discernir e
e para saborear as secretas delícias de um belo e agradável ofício de pintor; Denon, enfim, que carregava esse nome lindo, adequado para a qualidade de seu humor e de seu gosto, menos feito para agradar a David: Vivant. Ler seu catálogo é encantador: vemos aí todo o século XVIII a salvo. Dos seus contemporâneos, os que mais amou foram Gros e Prud'hon. Assim, certos homens constituem o leve liame que vai de uma época à outra e que assegura a continuidade de uma civilização. O Louvre pôde ser posto solenemente sob a invocação do Apolo do Belvedere: vão simulacro. Os venezianos estão lá. Os flamengos e os holandeses estão lá. À pintura lisa, oca e descorada dos maus davidianos, Ticiano e Rubens opõem a sutileza da matéria, o dourado das pátinas, as perspectivas infinitas de uma arte brilhante, dramática e suave ao mesmo tempo.
Enfim, no depósito da rua dos Petits-Augustins, Alexandre Lenoir instala o Museu dos monumentos franceses, nascido das confiscações revolucionárias, protegido mais tarde contra a reação religiosa por
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Jean-Lubin Vauzelle - A Sala Introdutória do Museu dos Monumentos Franceses - 1804 - Túmulo de Diane de Poitiers, cariátides do relicário de Santa Geneviève. Ao fundo, o túmulo de Mazarin de Coysevox |
Josefina e por Denon, e onde se veem todos os séculos da nossa escultura, representados por quinhentas obras-primas, regrupados em salas construídas para elas, na arquitetura e na atmosfera do tempo delas. Eis, talvez, a mais comovente maravilha entre as instituições artísticas da Revolução. Ela não existe mais 7, mas ela agiu profundamente sobre as origens e sobre o gênio do século XIX. Foi aí que a Idade Média começou a reviver para os poetas e para os pintores. Foi aí que Michelet criança sentiu revelarem-se suas primeiras curiosidades da história. Ticiano e Rubens no Louvre, as nossas rudes pedras nos Petit-Augustins, mundos novos se abriram aos devaneios da arte.
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¹ - La Décade philosophique, littéraire et politique, revista, 1794 - 1808.
² - E Girodet, que nos Prêmios Decenais (criados por Napoleão para celebrar o décimo aniversário do 18 Brumário) obteve o prêmio de "Pintura heróica" com seu Dilúvio, desclassificando as Sabinas, de David.
³ - Ministro do Interior
4 - A irmã de Eugênio de Beauharnais, Hortense, dedicou a ele 12 romanças para canto e piano.
5 - Charles François Paul Le Normant de Tournehem, diretor geral das edificações do Rei, muito ligado a Mme de Pompadour.
6 - Conservatoire du Museum, primeiro núcleo do museu do Louvre, criado em 1797.
7 - O Museu dos Monumentos Franceses de Lenoir foi fechado em 1816, seus locais transformaram-se no que é hoje a Escola Nacional de Belas-Artes de Paris. Em 1879, foi criado um outro museu com o mesmo nome e herdando um espírito próximo, por Viollet-le-Duc, no palácio do Trocadero onde permanece até hoje.
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* François Benoit, Lart français sous la Révolution et lEmpire, p. 29 e segs. (N do A)
Parabéns pelo blog. Tô conhecendo agora. Aprendendo muito aqui.
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