A descida do Calvário: Texas Chainsaw Massacre (2022), de David Blue Garcia




Particularmente, sempre defendi as refilmagens. Acredito que haja certa beleza no fato de cada geração abraçar os terrores que atormentaram suas antecessoras, e observar com novos olhos esses medos, inquietações e ansiedades, repaginando-os de acordo com o alfabeto de sua época. É evidente que nem toda refilmagem se encarrega de servir-se como obra-prima, bem como na história da arte, nem toda criação feita a partir de outra famosa é capaz de comover como aquela que lhe deu origem. É dito que El Greco realizara sua Pietà a partir da obra de Michelangelo, após a chegada em Roma, reinterpretando a “tortura da carne” empregada no mármore do artista toscano numa composição que manifesta a tormenta como drama absoluto. Não há acalento visível. De olhar melancólico, Maria ergue os olhos na mesma altura do Calvário que se impõe ao fundo. O céu parece compadecer de seu lamento, escurecendo-se em volumosas nuvens de um azul enegrecido erguidas sobre a paisagem, interpelando na agrura do dia, o abatimento da mãe que sustenta, sobre o colo, o corpo flagelado do filho salvador.

El Greco. Pietà, 1571-76. Philadelphia Museum of Art - EUA



Texas Chainsaw Massacre, dirigido por David Blue Garcia, com argumento de Fede Alvarez, igualmente suspende na iminência da tempestade o drama central de sua mise-en-scène. Leatherface, que na obra de Tobe Hooper não passava de uma marionete da família, um carnífice que se encarregava de dar fim aos corpos trazidos à residência, e perpetuar o ritual familiar, é posto aqui como o último descendente dos Sawyers (apesar de nunca mencionarem o nome da família no longa). Com a chegada dos jovens em Harlow e a tentativa de tomada da propriedade, antigo orfanato no qual Leatherface (Mark Burnham) vivera, Mrs. Mc (Alice Kriege) entra em colapso. Na viatura da polícia local, em direção ao hospital, Leatherface se prostra como aquela Virgem de El Greco, ecoando um grito de lamúria sobre o corpo morto da mãe, o qual segura calorosamente entre os braços. Desde então ele se vê imerso em uma contenda de vingança, destinado a exterminar os responsáveis pela perda maternal. A retirada da motosserra encapsulada no interior da parede da casa reforça a ideia de que presenciamos um sintoma do luto. Leatherface já não é o mesmo de 73, mas a família impera como a base de sua fundação.

Fotogramas de Texas Chainsaw Massacre (2022): a lembrança da Pietà de El Greco



A citação de El Greco não se faz aqui de maneira gratuita. É uma reprodução dela que jaz sobre a cama de Mrs. Mc na residência Sawyer, e como na pintura, tudo no filme parece fazer apelo ao drama da lamentação. A tempestade prenuncia a revolta de Leatherface, pairando suntuosa sobre a planície de girassóis moribundos. Como se o céu compadecesse do sofrimento, derramando suas lágrimas sobre a paisagem. Quando observamos a casa na qual reside Sally – aquela mesma da qual tentara, com os amigos, se apropriar no verão de 73 – os postes de energia elétrica parecem aludir às cruzes do Gólgota da composição maneirista. Há um tom de melancolia que perpassa a atmosfera de Texas Chainsaw Massacre. O Sol tórrido que oscilava a visão na fotografia de Daniel Pearl dá lugar a um amanhecer sem sol, reiterado na paleta esmaecida de Ricardo Diaz, que não parece aquecer. Os girassóis que no filme de 74 incendiavam o entorno da casa com seu colorido solar, aqui curvam seus discos em direção ao solo.

Os girassóis em The Texas Chain Saw Massacre (Tobe Hooper, 1974) e Texas Chainsaw Massacre (David Blue Garcia, 2022)



Há certa humanidade na figura desse novo Leatherface. Algo que as recentes refilmagens tem buscado investir em seus antagonistas, evidenciando que por trás da criatura monstruosa, há um motivo ulterior que perpassa as ações. Como em Halloween Kills (2021), onde Michael só deseja retornar para casa, igualmente Leatherface, ao final, caminha em busca do lar e da memória de uma família sepultada na solidão daquela terra árida. A melancolia do gesto ao abraçar o vestido da mãe, trazendo a memória olfativa do perfume materno no colo, parece retomar o drama que consumia o vilão de Hooper após assassinar o grupo de jovens, cobrindo a face com as mãos. Um gesto humano doado ao monstro que em momentos seguintes lamberia os próprios lábios, refutando por completo seu tormento psicológico.

A humanidade de Leatherface nos filmes de Tobe Hooper e David Blue Garcia


Como o filme de Tobe Hooper, o remake, ou requel (reboot + sequel), se quisermos seguir os ensinamentos do novo Scream (Matt Bettinelli-Olpin; Tyler Gillett, 2022), parece não conseguir agradar a gregos e troianos. Argumentam sobre a fragilidade do roteiro, como fizeram com Tobe Hooper em 1974, criticam a violência exagerada, semelhante ao que pontuara o corpo de censura da época.

Aproveito a menção a Scream para discutir acerca de uma questão que tem pairado minhas ideias diante dos recentes lançamentos do cinema de horror, que se voltam a símbolos reconhecidos, como ocorre com os slashers Scream, Halloween e Texas Chainsaw Massacre. No filme de Bettinello-Olpin e Gillet, a personagem Mindy (Jasmin Savoy Brown) afirma acerca das novas regras dos requels: é preciso partir do original para agradar os fãs do original. Mas acredito que eles vão além. Esses filmes fortalecem-se não somente de seus modelos em nível de trama, isto é, reincorporando as antigas heroínas e final girls em novas situações aterrorizantes, mas fazem como El Greco, nutrem-se de modelos visuais para a completa realização de suas obras.

O roadkill nos filmes de 2022 e 1974


A saga Halloween, de David Gordon Green, brilhantemente apresentava semelhanças com diversas passagens do filme de Carpenter e de seus sucessores. O corpo suspenso pela faca em uma das paredes da residência, o fantasma do lençol, ambos do primeiro filme; a idosa com o roupão cor-de-rosa e os bobs no cabelo de Halloween II (1981); as máscaras de Season of the Witch (1982) que reaparecem em Halloween Kills (2021), ou ainda numa via mais subterrânea, a busca por vingança que traz à baila a caçada da Criatura em Frankenstein, de James Whale (1931).

Scream utiliza-se de toda a mise-en-scène de Craven num filme que dignifica a estética dos anos 90 no seu apelo aos planos gerais, no uso constante do ângulo holandês, na instabilidade espacial da câmera. Uma elegia ao cineasta que fomentou sua carreira no campo do horror, e que ressignificou por completo o slasher na década, cujo gênero parecia dar seus respiros finais. São filmes realizados por apaixonados pelo cinema de horror. Diretores que cresceram com as obras de John Carpenter, Wes Craven e que fazem questão de prestar a devida homenagem a seus mestres formadores. O mesmo pode ser dito sobre David Blue Garcia.

Seu filme e o de Hooper possuem uma metragem equivalente, 83 minutos. Não há espaço para o desnecessário, não há tempo a perder. Como Hooper fizera em 1974, cada cena constitui a fagulha primordial do incêndio central da trama. Ambos se iniciam com o relato do trágico acidente de Sally e seus amigos. O primeiro pela via do mockumentary – um reflexo da predileção dos anos 70 pela vertente dos snuffs; o segundo pela apresentação no televisor da conveniência local de um documentário realizado a partir dos eventos de 18 de agosto de 1973 – sintoma de nossa atual obsessão com podcasts e documentários de true crime.

O filme de Hooper choca na essência. Como Kim Newman descrevera em 1984, “só pode ser defendido como um pesadelo”. Ali está presente a ideia da morte desde o princípio, com a carcaça do tatu, celebrada nos créditos iniciais da versão de 2022. Em Hooper, o roadkill retorna como ornamento da mesa, na sequência fatídica do jantar canibal. Mas há outros elementos que manifestam essa simbologia da morte. O ossuário da residência da família parece uma catacumba medieval, eternizando o símbolo supremo da morte, a caveira, como a cruz do altar de seus rituais lúgubres. O relógio na paisagem reforça a finitude do tempo daqueles que adentram a catedral da morte, a casa. Quase uma enciclopédia visual sobre o memento mori.

A morte imperava no cotidiano daqueles jovens da geração do pós-68, que com suas revistas de astrologia, suas críticas à indústria animal, ao ambiente reacionário daquela Harlow de 73, seguiam seus pressupostos de transformação social e de divertimento na insanidade sufocante do sudoeste estadunidense. De maneira semelhante, a juventude idealista de Blue Garcia clama pela mudança. Uma tentativa, como eles mesmos pontuam, de “construir um mundo melhor”. Apesar da crítica ao conservadorismo, simbolizada pela bandeira dos Confederados que se estende na fachada do antigo orfanato, seus ideais são igualmente corruptivos e calcados no imperialismo tipicamente norte-americano, na crença em um sistema de apropriação territorial desumana, na ideia de denúncia pelo cancelamento, irrisória num mundo onde o terror ultrapassa a esfera virtual. Não importa o desejo de mudança, trata-se de uma geração cujos ideais precipitam no abismo da inocência utópica.

Memento mori em The Texas Chain Saw Massacre (1974)



Mas semelhante ao que fizera David Gordon Green, há uma retomada da estética do longa de Hooper. O cadáver esfolado do início de 74 retorna como um espantalho no campo de girassóis. A morte de Dante, entrevista pela moldura da porta, pode ser posta ao lado daquela de Kirk no original, que barafustava no chão como um gado no abatedouro. O churrasco palpitando sobre o fogo da loja de conveniência durante a fuga de Sally igualmente é aludido na festa dos jovens de 2022. Seu aprisionamento nos arbustos secos durante a escapada noturna parecem ecoar nas mãos sobrepostas nas janelas do ônibus durante o massacre juvenil. Os planos gerais da rodovia desocupada e os postos de gasolina perduram em ambos quase como pillow shots. Se posto ao lado do filme de Hooper, mesmo quando o de Blue Garcia se estende sobre a escuridão da noite, ele equivale aos momentos noturnos de seu antecessor.

Comparação entre as mortes de Kirk (1974) e Dante (2022)



Talvez tudo isso não seja o necessário para convencer os críticos de Texas Chainsaw Massacre. Mas é fato que há certa beleza em toda a exuberância da crueldade. Para retomar as palavras de Roger Greenspurn acerca do filme de 74, “O Massacre da Serra Elétrica jamais lhe deixa esquecer que seu terror é também de uma beleza insana”. Quem sabe um dia David Blue Garcia receba os louros que merece, e possa formar uma futura geração de cineastas, que se valerá de suas imagens para fundar seu imaginário do horror, como Hooper fizera. Wes Craven, Tobe Hooper, todos eles se fundaram no cinema de seus antecessores e igualmente todos foram criticados em seu tempo. Que a dança da motosserra continue traçando seus passos no horizonte. 

O amanhecer e a dança da motosserra nas versões de 1974 e 2022



*As citações de Kim Newman e Roger Greenspurn foram retiradas de JAWORZYN, Stefan. O Massacre da Serra Elétrica [Arquivos Sangrentos]. tradução de Antônio Tibaud e Dalton Caldas. Rio de Janeiro: DarkSide Books, 2013.

Comentários