A bela adormecida


 A parisiense é uma tela de grandes dimensões (192 x 125 cm) que Édouard Manet pintou por voltas de 1876. Está no Museu Nacional de Estocolmo.  Não é duvidoso que tenha surgido como uma resposta à Mulher da luva, retrato mundano de grande qualidade e sucesso, e de dimensões semelhantes, que Carolus-Durand havia exposto no Salon de 1869. 






Uma resposta moderna e de grande força. Ao contrário da elegância um pouco afetada de Carolus-Duran, Manet impõe intensidade a essa mulher que parece avançar para nós, firme, concentrada, decidida e sem sorrir. Seu acorde quase monocromático de tons escuros e claros, seu fundo abstrato mas vibrante de pinceladas luminosas, que não perdem o vigor no vestido sombrio, instauram um clima de energia inquieta.

O modelo de Carolus-Duran era esposa do pintor. O de Manet era uma atriz chamada Ellen Andrée.


Ellen Andrée, numa fotografia por Nadar

Andrée era uma atriz do teatro naturalista, ou seja, do teatro moderno que abandonava as atitudes grandiloquentes e as falas empoladas para representar papéis de personagens tirados da vida quotidiana. Além de sua beleza, decerto seus dons teatrais que lhe permitiam tomar atitudes convincentes de personagens diversos devem ter seduzido muitos pintores no final do século XIX. Ela aparece, por exemplo, neste óleo de Degas intitulado Num café, mas também conhecido como O absinto (1876, Musée d'Orsay). Nele, o rosto cansado, o olhar vago e melancólico, tem um espírito oposto ao de A parisiense. O modelo para o homem ao lado é Marcelin Desbutin, que posou para o grande retrato pintado por Manet que está no MASP.


Edgar Degas - In a Café - Google Art Project 2.jpg


Ellen Andrée foi também modelo para um quadro celebérrimo na época, e de grande erotismo: Rolla, de Gervex (Musée d'Orsay - 1878 - 175 x 220 cm)
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A obra foi recusada no Salon oficial de 1878, não por razões estéticas, mas morais. O tema vem de um poema romântico de Musset (1833). Ele conta a história de um jovem, Joseph Rolla, arruinado pela prostituta Marie, que decide se matar depois de ter gasto com ela tudo o que lhe restava. Rolla havia jurado que:

Ninguém, no dia seguinte, o veria vivo.
Quando Rolla, sobre os telhados viu o sol aparecer,
Foi se apoiar à beira da janela.
Rolla se virou para olhar Marie.
Ela estava cansada, e tinha adormecido.

Não foi o nu que escandalizou o juri do Salon, mas as roupas femininas, contemporâneas, jogadas sobre a cadeira, e misturadas a uma cartola e uma bengala, atributos masculinos. A bengala em riste saindo dentre as roupas é sugestivamente metafórica. Tudo oferecia indícios claros de prostituição.

Com a recusa do juri, Gervex expôs o quadro numa galeria. Sucesso fulminante: filas enormes se formaram para ver a obra cuja exclusão da mostra oficial causara grande escândalo.

Ellen Andrée contaria mais tarde:

"Henri Gervex dispôs minha anatomia na cama de seu Rolla. Eu não queria ser reconhecida nessa Manon em pose tão abandonada. Recomendei a Gervex: - Sobretudo, não lhe dê o meu aspecto! Em suma, para o rosto, foi uma morena que posou"


O erotismo de Gervex tem muito de necrofilia. Morte e sono se reúnem em Rolla. Mais ainda, o erotismo necrófilo se acentua em Antes da operação, ou O dr. Péan ensinando no hospital Saint-Louis sua descoberta do clampeamento dos vasos. (1887, Musée d'Orsay, 242 x 188 cm).







A obra tem um interesse para a história da arte e para a história da medicina. Retrata a operação cirúrgica pública feita por um grande professor, que segura na mão direita a pinça por ele inventada. Nada de aventais ou máscaras. Foi sentida imediatamente como uma versão contemporânea da Lição de anatomia do dr. Tulp, de Rembrandt (1632). Mas, ao invés de um cadáver reduzido ao estado indiferente de objeto, Gervex escolhe mostrar uma linda moça anestesiada, com os seios de fora e cabelos esparramados sobre a mesa de operação (veja-se as esponjas para clorofórmio, dentro do vidro sobre a mesa auxiliar). O Dr. Aubeau, anestesista, controla o pulso e a respiração da paciente. O modelo teria sido também Ellen Andrée.




É possível dar um passo além no decadentismo científico-necrofílico fim-de-século. Em 1890, inspirado, de modo visível, pelo Dr. Péan, de Gervex, o pintor espanhol Enrique Simonet, de 24 anos, executa em Roma a tela intitulada Anatomia, ou também E tinha coração! (Museu de Málaga, 177 x 291). Trata-se, de fato, de uma junção entre Rolla e Péan: a necropsia revela que há um coração no corpo dessa mulher que o público percebia como uma prostituta desalmada, femme fatale, destruidora de homens. Os leitores de Aluísio Azevedo hão de se lembrar de seu romance A condessa Vésper: é o mesmo clima.




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