Há uma expressão francesa que se tornou internacional, significando "catálogo arrazoado", ou "catálogo raciocinado": é "catalogue raisonné". Trata-se, em absoluto, do instrumento fundamental para o conhecimento com rigor de qualquer artista.
Antes de tudo, o catalogue raisonné é um inventário, o mais completo possível, da obra de um artista. Cada item vem acompanhado de dados precisos: tamanho, técnica, localização, data. Há também informações sobre seu percurso: proprietários, exposições em que figurou, onde foi publicado e outros. Inclui-se nele documentos informativos ou probatórios. Discute-se também autenticidade e atribuições. Faz-se listas de obras duvidosas ou falsas.
O catalogue raisonné pode cobrir ainda a obra parcial de um artista, por período, ou por técnica: pinturas, gravuras, desenhos, bronzes, mármores, etc.
Há também o catalogue raisonné de coleções: trata-se então de verificar cada uma das obras a que compõem.
O catalogue raisonné nasceu com o desenvolvimento do mercado das artes no século 18. Era necessário separar o verdadeiro do falso. O rigor científico dava as mãos à lógica do mercado. Seu criador foi Edme-François Gersaint, marchand célebre por causa de um quadro, pintado por Watteau, que tem seu título associado a ele: L'enseigne de Gersaint, em português: O cartaz (ou o anúncio) de Gersaint.
Gersaint tinha se instalado há pouco como galerista em Paris. Amigo de Watteau, pediu a ele uma obra que servisse como outdoor para sua loja. Watteau pintou em 1720 essa suntuosa tabuleta de 1,63 x 3,06 m. Uma tarefa de oito dias. A obra ficou do lado de fora, protegida por um toldo. Não por muito tempo, porque o sucesso foi enorme, e a tela se vendeu rapidamente. Está hoje nas coleções do palácio de Charlottenburg, em Berlim.
Gersaint tinha espírito sistemático, e estabeleceu o primeiro catalogue raisonné que se conhece, intitulado Catalogue raisonné de toutes les piėces qui forment l'oeuvre de Rembrandt, ou seja, Catalogue raisonné de todas as peças que formam a obra de Rembrandt. "Peças", aqui, está significando obras gráficas, excluindo pinturas. Esse catálogo foi publicado postumamente, com revisões e acréscimos.
Estabelecer um catalogue raisonné é um trabalho enorme e literalmente interminável. Porque novas obras surgem, outras têm as precedentes atribuições discutidas e modificadas. O autor pode ser uma única pessoa, ou uma comissão. Essa comissão, ou comitê, pode ser permanente, discutindo e julgando obras, e tornar-se responsável pela edição.
Assinalo um trabalho de caráter excepcional: a publicação, nos anos de 1960 e 70, da coleção Classici dell'arte, pela editora Rizzoli, de Milão. Na Itália, esses livros eram vendidos em bancas de jornal, por um preço ínfimo. 111 volumes traziam, de maneira precisa, com rigor acadêmico, a identificação, descrição e estado da questão de cada obra de um artista, ou seja, um verdadeiro catalogue raisonné. Um projeto científico, mas também humanista, que não foi igualado. É fácil encontrar, e há alguns na Estante Virtual. Custam barato e constituem formidáveis instrumentos de pesquisa.
As possibilidades oferecidas pela computação estão transformando, de modo radical, os catalogues raisonnés. Porque, quando publicado em livro, torna-se imediatamente obsoleto, já que informações e obras novas vão aparecendo e sendo discutidas. A grande vantagem da informática é que o catalogue raisonné se torna plástico, podendo ser modificado a cada instante. Assim, por exemplo, o catalogue raisonné das gravuras de James McNeill Whistler.
A história da arte brasileira sofre de um deserto quase total de catalogues raisonnés. É desesperante para quem quer desenvolver um estudo rigoroso. Nas universidades, há um preconceito que vem da má informação. "Um catálogo?", costuma-se ouvir com muchocho. Ora, o catalogue raisonné vale por várias teses, porque enfrenta questões muito espinhosas que o pesquisador deve destrinchar. E, sem os catalogues raisonnés, os estudos interpretativos ficam limitados.
No Brasil, eu conhecia apenas o catalogue raisonné de Portinari, que foi publicado em livro.
Fruto do excelente projeto Portinari, tem uma versão online.
A grande e bela notícia recente é que também Eliseu Visconti ganhou o seu, inteiramente online. É um esplêndido trabalho de rigor, que nasceu da pesquisa de Mirian Nogueira Seraphin, realizada na Unicamp, e dos estudos de Tobias S. Visconti, neto do artista.
Para que os estudos de história da arte no Brasil sejam feitos com o rigor necessário, os catalogues raisonnés são fundamentais. É imperativo que pesquisadores se dediquem a essa tarefa.
Professor, foi lançado também o da Tarsila do Amaral, em livro (3 volumes) e online: http://www.base7.com.br/tarsila/
ResponderExcluirMuito bom a explicação.
ResponderExcluirQuantos catálogos raisonné existem no Brasil?
ResponderExcluirBacana. Gostei e aprendi. Parabéns.
ResponderExcluir