Os falsos Aleijadinhos do MASP

O MASP organizou uma exposição intitulada "Imagens do Aleijadinho", no quadro de um tema geral :"Histórias afro-atlânticas". Por que não?


Ocorre que essa mostra é apenas uma reunião de obras. Uma instituição séria, como deve ser um grande museu, não se presta a juntar peças sem que haja qualquer rigor, coerência ou sentido. Ora, não é preciso ser grande especialista para perceber imediatamente que, nessa mostra, nem todas as esculturas podem vir da mesma mão ou do mesmo ateliê.



Primeiro, pela diferença de qualidade entre elas. Algumas são sublimes e de atribuição segura, outras nem tanto.


Além disso, as diferenças estilísticas entre várias delas são gritantes. 


A curadoria percebeu perfeitamente a situação, buscando se safar com uma frase inserida em meio a longo texto de apresentação, que diz o seguinte; "A exposição reúne 37 esculturas devocionais cuja autoria foi atribuída ao Aleijadinho ou sua oficina por diferentes especialistas ou pela tradição em diferentes momentos." É uma pirueta que não resolve nada.


A questão da autoria das obras do Aleijadinho é espinhosa. Um oceano de incertezas, em que colecionadores e marchands tudo fazem para garantir a autenticidade das peças que possuem. Já houve exposições de "Aleijadinhos" em restaurantes mas também em instituições que deveriam ser sérias e que chegaram ao ponto de colocar uma urna para que o público votasse se as obras eram ou não do grande mestre! O que dá a medida de como as artes são tratadas neste Brasil de minhas tristezas. O catálogo daquele carnaval que foi a mostra Brazil Body & Soul, enviada ao Guggenheim de Nova Iorque em 2001 por um escroque que terminou na cadeia, chegou ao ponto de publicar que o Aleijadinho fora aluno de Rodrigo de Melo Franco de Andrade, um dos criadores do IPHAN em pleno século XX. Lembro essas tristes histórias apenas para situar o caos que parece constituir o corpus do grande escultor.


 Felizmente, existe um instrumento científico de primeira qualidade que é O Aleijadinho e sua oficina - Catálogo das esculturas devocionais, trabalho de fôlego, rigoroso e cuidado, realizado por Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antonio Fernando Batista dos Santos. Foi publicado pela editora Capivara em 2002. 


Ali, as análises são rigorosas, as atribuições cuidadas. E basta folhear as excelentes fotos desse catálogo para constatar aquilo que falta nas obras apresentadas pelo MASP: constância na altíssima qualidade e coerência estilística que obedece a uma clara evolução.
Um catálogo nunca é definitivo, e é possível acrescentar ou retirar obras por ele elencadas. Ou, pelo menos, discuti-las. A mostra do MASP não faz nada disso. Agrupa apenas e diz: são do Aleijadinho. 
Ok, com uma frase meio perdida que sussurra: segundo especialistas e tradições. 
Pior a emenda que o soneto. Porque o papel de uma instituição séria é de, justamente, propor debates atributivos em que cada peça venha examinada com cuidado.


O MASP não fez nada disso. Presta assim um desserviço à obra do Aleijadinho e ao público que sai da exposição acreditando que tudo aquilo é mesmo do escultor mineiro. Aumenta a confusão.
Para se ter uma ideia do espírito amadorístico que presidiu à concepção da mostra, nas paredes do fundo foram reunidos "mapas de Minas Gerais e Vila Rica no século 18, gravuras de viajantes estrangeiros que passaram pela região no início do século seguinte, imagens de fotógrafos que registraram suas obras e trabalhos de artistas que foram influenciados por sua arte ou a ela se referem na produção moderna e contemporânea", como enumera o texto explicativo pintado na parede. Trata-se, na verdade, de um punhadinho de coisas mal alinhavadas, lembrando o aluno neófito que quer "ilustrar o contexto" de seu trabalho procurando imagens na internet. No meio desse conjunto alusivo, paira o São Francisco de El Greco, que parece perguntar, perplexo, que diabos vim fazer nesta galera?



Entre essas obras está um quadrinho simpático de Henrique Bernardelli, datado de 1900, e representando  Mestre Aleijadinho Esculpindo para o Púlpito da Igreja em Vila Rica - MG (título que foi dado no catálogo de um leilão no qual a obra foi vendida recentemente). Testemunho do interesse pelo Aleijadinho no início do século, a tela merece um estudo aprofundado.


Balanço final da mostra: um desastre em que todos saem perdendo: o público porque toma gato por lebre; o museu, porque apresenta uma exposição que não é digna dele; o Aleijadinho, porque o conjunto de sua produção continua nebuloso.
Mas não, me engano. Lucra algum colecionador que tenha emprestado obra incerta, e que sai com prestígio por ter sido exposta com outras, indiscutíveis, num museu de prestígio.

Comentários

  1. Da mesma forma que o senhor critica, critica, critica... e não prova nada!
    Enquanto esse mundo existir, haverá dúvidas em relação às atribuições e oficinas de Aleijadinho, como o senhor mesmo diz em seu texto "um oceano de incertezas". O próprio MASP não faz nenhuma atribuição e minha questão é: as próprias atribuições não confirmadas, bem como as obras da 'escola' de Aleijadinho, não fazem parte de sua obra e de seu legado? Eu penso que sim e isso só prova o quão completa, abrangente e 'misteriosa' é sua obra.
    Quanto à veracidade, cabe a cada colecionador verificar a sua e entendo que ele deve sair sim, muito orgulhoso de ter sua obra vinculada àquela exposição.

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    1. Plenamente de acordo com sua última frase. Os colecionadores devem estar felicíssimos em ter suas obras naquela exposição. Ela foi feita para felicidade de colecionadores, mas não para quem deseja uma história da arte séria e rigorosa neste país.

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    2. A felicidade de colecionadores se dá por sua própria coleção.
      Dentre outras, uma das missões de um museu é levar cultura para o maior número de pessoas possível, inclusive (e principalmente) àquelas que não tem acesso ou simplesmente não desejam uma história da arte séria e rigorosa, já que para isso existem as Universidades.

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    3. Entendi. O certo na universidade, o errado no museu.

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  2. O anónimo acima deve ser colecionador! Pobreza de pensamento!

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  3. Parabéns pelo artigo esclarecedor, Prof. Jorge Coli. Eu estava pensando, aqui em Minas Gerais, que estava perdendo uma grande exposição, sem ter noção que o MASP, lamentavelmente, colabora para perpetuar essa visão confusa sobre a obra de Aleijadinho. O trabalho de Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Olinto Rodrigues dos Santos Filho e Antonio Fernando Batista dos Santos, publicado pela editora Capivara em 2002, é realmente uma referência fundamental nesse campo. E gostei muito de conhecer a pintura do Henrique Bernardelli, de 1900, já vou incluí-la em minhas aulas. Concordo com a ousadia de seu pensamento que vai contra os interesses do mercado, sem anonimato. Aproveito para dar os parabéns pelo prêmio Almirante Álvaro Alberto.
    Abraços,
    Gedley Belchior Braga

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  4. Se o problema é o anonimato, o faço para preservar meu nome e a instituição em que trabalho, já que não sou adepta de redes sociais. Mas posso me apresentar como mineira que vive em SP, arte educadora, museóloga e conservadora restauradora. Não sou colecionadora e não acho que o museu em questão passou informações erradas. Respeito todas as opiniões e quis, de forma direta, expressar a minha aqui. Penso que cada um acredita no que quiser. Agradeço os retornos e me retiro pois meu objetivo não é entrar em discussões que não tem fim.

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    1. Com respeito, sra. Anônima: não há como 'acreditar no que quiser' quando falamos em metodologia de análise. Embora eu mesma reconheça que atribuição por vezes se mostre como um 'trabalho de fé', ele é pautado em método. Há uma dose de subjetividade do pesquisador, sim, ao agrupar e nomear, mas até esta subjetividade deve ser fundamentada em algo mais do que só nossa opinião. Esse algo mais é: método.

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    2. jorge Coli esse artigo lavou nossas almas (Historiadores da Arte sérios) pois todos nós sabemos quão ruim e mal estruturada é essa exposição, sabemos também que imagens de tão pessima qualidade não tem como em hipotese alguma terem sido feitas por nosso grande mestre.. enfim, concluímos que esse "Anônimo" que tanto debate com Sr. nada entende ou sabe de Arte, e com certeza defende os interesses desses ditos colecionadores, que podem ou naõ estar ciente dos seus "falsos" aAleijadinhos. Grato demais por toda sua contribuição louvável pera verdade da ARTE!

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    3. Sra Anônima logo se ve que vc nao possui nenhum conhecimento e que com certeza sua formação é bem duvidosa, acho que não estudaste sobre os conceitos de metodologia de análise de imagens. Sugiro que vá estudar um pouco mais!

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  5. eu vi uma menininha passando de escultura em escultura dizendo esta do Aleijadinho essa não é do Aleijadinho dizendo seus motivos aque eu vejo um meninão dizendo isso é certo isso é errado sem citar motivo algum análise da pintura de Henrique Bernardelli não fez análise da pintura de El Greco não fez um homem de poucas indagações e com as mãos cheias de dedos ponto final

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  6. A anônima é arte-educadora e museóloga. Está explicado porque o amadorismo e a pobreza de pensamento vigoram em nossos museus e instituições culturais. Deve haver muitos que pensam como a anônima com cargos importantes em lugares que deveriam primar pela pesquisa séria da nossa história. Que lástima!

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  7. A dor dos atribucionistas.
    Obrigada pelo texto. Vejo que a metodologia ainda precisa se mostrar. Amém.

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  8. Rodolfo Coelho de Souza31 de maio de 2018 às 08:25

    Caros, o Jorge sabe melhor do que ninguém que atribuição de autoria é apenas a ponta do iceberg das coisas que realmente interessam estudar numa obra de arte. Faço o paralelo com a música (que é meu campo) do período colonial brasileiro (que não é minha especialidade). Por muitos anos a musicologia perseguiu a utopia de reconhecer a autoria de peças coletadas sem assinatura. Até que se deu conta que havia um problema muito mais complexo que devia ser resolvido antes: quais as características estilísticas dessas obras que apareciam juntas num arquivo mas que poderiam ter (e tem) origens e datações muito diversas. Aí coisas curiosíssimas começaram a aparecer. Como por exemplo, uma certa música de procissão de Semana Santa, que "com certeza" se atribuía a um certo compositor mineiro porque no manuscrito aparecia o nome dele, e cujas cópias apareciam em diversos arquivos. De repente um pesquisador reconhece numa obra de um compositor português de um século antes a exata mesma música, com pequenas alterações que visavam simplificar a execução no ambiente brasileiro menos aparelhado. Percebe-se então que esse compositor mineiro era apenas um mero copista e as assinaturas nos manuscritos não eram sinal de autoria, mas de propriedade da cópia, numa sociedade onde a noção de autoria era muito mais difusa e a de propriedade daquele objeto interessava registrar. Acontece que no caso da música, felizmente, um manuscrito de autor mineiro do período colonial não tem valor de mercado, por isso a mistificação de autorias não prospera. Mas o mais interessante desse post para mim é a imagem da tela de Bernardelli. Ali a gente vê o processo de construção do mito de um autor e como isso representou uma estratégia para a primeira república inventar uma história do Brasil também através da história da arte. Aquela tela também valeria, por si só, um post à parte. O que, obviamente, Jorge, deixo para você.

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  9. Curadoria a serviço do mercado.

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  10. E eu que tinha percebido um monte de defeito na obra do Aleijadinho, tentava compreender as diferenças com aquilo que eu conheço de Congonhas e Ouro Preto, vem o Coli, que respeito, e diz com segurança que muitas não são do mestre.
    Fiquei com cara de tacho.

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  11. O catálogo da Myriam Andrade é livro básico de referência nos estudos sobre a obra do Aleijadinho. Aproveito o post para indicar outra obra de valor, O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, do antigo e já falecido conservador-chefe do Museu do Louvre, Germain Bazin.

    Quanto à atribuição de autoria, meu amores, os historiador da arte não acredita no que quer... A atribuição de uma escultura não documentada a determinado autor é pautada pela análise comparativa de obras do mesmo autor com documentação histórica comprovante. Analise-se, entre outros aspectos, o suporte, a técnica e o estilo incluindo panejamentos, traços anatômicos, cabelos, olhos, etc.

    Uma "história da arte séria e rigorosa" é fundamental! Chega de viver no país da bandalheira! Chega de viver no país que esculacha arte, educação e ciência. Chega!

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  12. Parabéns pelo texto-denúncia e pela paciência na respostas a "anônimos".
    Qualquer pessoa minimamente informada percebe que reunir o anunciado número de obras "atribuídas" a Aleijadinho é inviável, a não ser que o objetivo seja misturar obras autênticas com inventadas.
    Isto se deve, em grande parte a introdução do discutível conceito de que a exposição é do curador e não do artista que passou a ter papel secundário. Consolidou-se uma espiral de valorização das obras que liga instituições, curadores e colecionadores, com as pessoas se alternado em múltiplas posições. E isto , que a rigor, não é coisa muito nova, tem se a razão de ser de muitas instituições aqui e no exterior.

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    1. A um punhado de peças amontoadas seria preferível um número menor de esculturas que mostrasse, com clareza, a evolução do trabalho do Aleijadinho, desde o Anjo tocheiro do Museu da Inconfidência até o Anjo da amargura do santuário de Congonhas, exemplo de correção anatômica.

      A um punhado de peças amontoadas, que misturam esculturas de atribuição segura com outras cuja atribuição pode gerar incertezas, seria preferível honrar o nome do Aleijadinho com debates sobre a obra do artista, gratuitos e abertos a população.

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  13. O catálogo da Myriam Andrade é livro básico de referência nos estudos sobre a obra do Aleijadinho. Aproveito o post para indicar outra obra de valor, O Aleijadinho e a escultura barroca no Brasil, do antigo e já falecido conservador-chefe do Museu do Louvre, Germain Bazin.

    Quanto à atribuição de autoria, meu amores, os historiador da arte não acredita no que quer... A atribuição de uma escultura não documentada a determinado autor é pautada pela análise comparativa de obras do mesmo autor com documentação histórica comprovante. Analise-se, entre outros aspectos, o suporte, a técnica e o estilo incluindo panejamentos, traços anatômicos, cabelos, olhos, etc.

    Uma "história da arte séria e rigorosa" é fundamental! Chega de viver no país da bandalheira! Chega de viver no país que esculacha arte, educação e ciência. Chega!

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  14. Sobre o espetáculo da exposição do Aleijadinho pode-se recordar das palavras de Belting em O fim da história da arte: "Os museus aceitam com gratidão e submissão as coleções particulares mais impróprias, cuja utilização é ditada exclusivamente pelo doador. (...) Surgem já exposições em que velhas e novas obras reagem umas às outras em genealogias falsas ou irônicas que parecem livres da lei da história da arte. São forçadas comparações originais para demonstrar de maneira patente uma tese recém-nascida".

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  15. Realmente, Sr. Jorge Coli, que admiro e respeito, aqui no Brasil tudo é diferente, menos a ganância de certos colecionadores, peritos de meia-tigela, e falsário inescrupulosos e muito endinheirado tonto que cai nas lábias desses larápios de nossa cultura. Infelizmente temos poucos connoisseurships de verdade, mas muitos peritos venais, que causam um grande mal ao País. Que se pode esperar de um lugar onde senador guarda dinheiro em cuecas, parlamentares fazem rachadinhas e outras são impunes por crimes terríveis. Nada. Falsificar obras artes não significa nada aqui, nem em lugar nenhum. Nesse País, defecam em diarreias Aleijadinhos em nossa cara, dia e noite.

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