Você é um robô e não sabe.

Dois irmãos gênios. O mais velho, pintor, o mais novo escritor. Três anos de diferença na idade deles. O primeiro, Josef Čapek, é uma figura essencial no modernismo tcheco. Seu cubismo inicial não era pura exploração da forma, mas instrumento de humanismo e crítica.



Foi figura de primeiro plano na cultura tcheca, como crítico, teatrólogo. Foi ainda fotógrafo e ilustrador.

Nos anos de 1930, seu humanismo torna-se expressivo-expressionista, engajado e libertário. Como nesta Republika, de 1938-39.




Josef Čapek foi preso por atividades anti-fascistas e enviado a um campo de concentração, pouco depois da invasão da Tchecoslováquia pelos nazistas, em 1939. Faleceu ali, em abril de 1945, pouco antes da liberação pelas tropas aliadas.

O segundo irmão, Karel Čapek, morreu de pneumonia em 1938: para alguma coisa boa sua morte serviu. Ela o impediu de assistir à derrocada humana que foi a Segunda Guerra Mundial, guerra por ele nitidamente prevista em seu romance A fábrica de absoluto, de 1922. Sobre este romance, neste mesmo blog, clique aqui.

Seus livros foram condenados tanto pelos nazistas quanto pelos comunistas, que dominaram a Tchecoslováquia depois da guerra. A denúncia dos totalitarismos, a defesa intransigente do humanismo que continham, não se acomodavam sob nenhuma tirania.

Karel estava escrevendo uma peça e não conseguia encontrar a palavra expressiva que designasse os homens-máquinas, encarregados de toda fadiga humana, que figuravam nela. Josef lhe sugeriu: "chame-os de robôs". Em tcheco, robot quer dizer trabalho pesado, forçado. A palavra se tornaria universal.



Foto da estreia, em 1920, de R. U. R - Robôs Universais de Rossum


R. U. R - Robôs Universais de Rossum, a peça de 1920, teve enorme sucesso. Foi traduzida para dezenas de línguas e montada no mundo inteiro. Lançou, definitivamente, a figura do robô na cultura contemporânea. 

Fritz Lang - Metropolis - 1927

Irwin Allen - Perdidos no Espaço - 1965 - 68

George Lucas - Star Wars - 1977

Stanley Kubrick - Odisseia no espaço - 1968

Karel Čapek, em sua peça, não apenas inventa esse o androide, como o associa ao universo da clonagem e da biônica.


Pal Verhoven - Robocop - 1987


Mais ainda, avança na dimensão existencial e metafísica da fronteira entre o que é humano e o que é robótico. 

Os replicantes de Ridley Scott estão perfeitamente anunciados em R. U. R - Rossum's Universal Robots.

Ridley Scott - Blade Runner - 1982

R. U. R - Robôs Universais de Rossum possui uma força expressionista esmagadora. Por que cargas d'água nenhum diretor decide pô-la em cena no Brasil? Não sei - mas não creio - que isso já tenha sido feito. Em todo caso, não consegui encontrar nenhuma tradução para o português.

***

DOMIN
Em seguida, o velho Rossum decidiu reproduzir o homem.

Um silêncio

HELENA

É esse o segredo que não devo dizer a ninguém?

DOMIN

A ninguém.

HELENA

Pena que isso já se encontre em todos os manuais escolares do mundo.


***

DOMIN

O que a senhora pensa, qual é o melhor operário possível?

HELENA

O melhor? Provavelmente aquele que... que... é honesto e dedicado.

DOMIN

Não. É aquele que custa menos.

***

DOMIN

Como têm memória sem falha, a senhora pode ler para eles vinte livros de enciclopédia e eles lhe responderão tudo na mesma ordem. Mas nunca inventam nada. No fundo, poderiam muito bem serem professores nas universidades.

***

ALQUIST

Porque não é mais preciso trabalhar, porque não é mais preciso sofrer, porque é preciso não fazer mais nada, porque não há mais nada a fazer... Ah, esse maldito paraíso! Helena, nada é pior que o paraíso na terra! Por que as mulheres não têm mais filhos? Por que o mundo se tornou a nova Sodoma cujo rei é Harry Domin.

HELENA o interrompe

Alquist!

ALQUIST

Tenho razão! O mundo enlouqueceu! Pode olhar para onde quiser, em todos os continentes, parece que assistimos a uma orgia! Nenhuma necessidade de fazer o menor gesto para comer, porque lhe dão diretamente na boca; nenhuma necessidade de fazer movimento algum, os robôs de Domin dão um jeito em tudo. Nós, a humanidade, o apogeu da criação, nada nos interessa mais - nem as crianças, nem o trabalho, nem a miséria! Fora uma coisa, claro - os prazeres, os gozos, o mais possível, e o mais rápido possível!

***

Dr. GALL

Tudo isso por causa da velha Europa que empregou os robôs na guerra. Como se não pudessem nos deixar tranquilos com a política deles. É um crime ter transformado nossos robôs em soldados!

ALQUIST

O verdadeiro crime, foi ter fabricado robôs.

***

DOMIN, como num sonho

Talvez já estejamos mortos há um século. Talvez sejamos fantasmas e só estejamos repetindo o que já fizemos antes... antes de morrer. Como se eu tivesse vivido isso numa outra vida. Como se eu tivesse recebido o tiro... uma bala aqui, na garganta.

***

HALLEMEIER

Pare de dizer bobagem! Ninguém é culpado. Os robôs, os robôs mudaram. Não podemos fazer nada a respeito.

***

FABRY

O senhor havia imaginado as consequências de sua experiência?

Dr GALL

Eu as previa.

FABRY

Mas então, porque o senhor fez?

Dr GALL

Era uma experiência científica.

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3º ROBÔ

Vocês nos deram armas. Era forçoso que nós nos tornássemos os soberanos.

DAMON

É preciso matar e reinar para ser como os homens. Leiam a história! Leiam os livros dos homens. É preciso reinar e assassinar para se parecer com eles.

ALQUIST

Oh, Domin... Nada é mais estranho para o homem do que sua imagem.

***

No dia 8 de março, publiquei em A Folha de S. Paulo, um texto sobre o romance A guerra das salamandras, de Karel Čapek. No caso de alguém se interessar em ler, aqui vai:

Um livro deveria estar em todas as cabeceiras: “A guerra das salamandras”, de Karel Čapek. Editado entre nós pela Record, foi escrito em 1936. Mostra transparente atualidade nos dias que correm.
Čapek era tcheco. Criou – por ideia de seu irmão – a palavra robô, que significa, em Tcheco, trabalho, trabalho pesado ou obrigatório. No título de uma peça de teatro, ele lhe conferiu o sentido que conhecemos de humanoide mecanizado. Nela, denunciou a desumanização promovida pela sociedade industrial.
Em 1922, escreveu o romance “A fábrica do absoluto” que, creio, não existe hoje disponível em edição brasileira. Nesse romance profético, narra uma operação atômica que afeta o misticismo humano, propagando-o como fé tóxica. As religiões e seitas se multiplicam, desencadeiam revoltas lideradas por pregadores alucinados e guerras sanguinárias. Qualquer semelhança com os nossos tempos não é mera coincidência.
“A guerra das salamandras” constitui-se como sátira premonitória. Essas salamandras são Tritões, grandes lagartos inteligentes descobertos no Oceano Pacífico. Primeiro, vão explorados como mão de obra escrava e tratados com crueldade. Depois, progressivos e calmos, mas sem hesitações, tomam conta da terra, eliminando a humanidade porque transformam o planeta num habitat aquático perfeito para eles próprios.
O livro faz pensar na irresistível ascensão dos regimes totalitários, em particular do nazismo. Porém não se reduz a isso, pois ultrapassa a sátira mecânica. Põe em evidência as contradições, os mais baixos interesses econômicos, os oportunismos e preconceitos indecentes, as covardias egoístas, as estratégias políticas incapazes de perceber o quanto a união para vencer o inimigo é necessária. Perdidos em seus enleios, em suas cobiças, em suas vaidades e individualismos, a humanidade perde a guerra.
As alusões são muitas, e nada mecânicas. O avanço das salamandras lembra o do nacional-socialismo sobre a Alemanha e a Europa, que parecia invencível. Mas as salamandras não são uma metáfora, ou uma caricatura, do nazismo. Por exemplo, são delicadas e corteses, nada violentas. Apenas implacáveis no seu domínio sobre o planeta. Lembram ainda os Morloks de H. G. Wells, em “A máquina do tempo” (1895), evocando as camadas oprimidas e exploradas da humanidade.
A ironia do livro, e seu humor, acentuam a complexidade do que, de outro modo, seria apenas uma tragédia pavorosa. Com gênio, Čapek introduz o riso para retratar a loucura humana. Um exemplo, de que gosto muito: diante do caos anunciado, há um debate para saber se as salamandras, ou Tritões, têm alma. Čapek inventa as seguintes declarações feitas a respeito por algumas célebres personalidades da época. “Nunca vi um Tritão; mas estou convencido de que os seres que desconhecem a música não têm alma. Toscanini.” “É certo e seguro que não têm alma. Nisso coincidem com o homem. O vosso G. B. Shaw”. “Não têm sex-appeal. Por isso não podem ter alma. Mae West.” “Possuem uma técnica e um estilo interessante de natação; podemos aprender muito com eles, sobretudo a nadar em longos percursos. Johnny Weissmuller”.
Čapek morreu em 1938. Não viu sua terrível profecia realizar-se na Segunda Guerra Mundial. No entanto, como a humanidade não conseguiu se extinguir, seu livro continua verdadeiro.
Quando ouço alguém dizer “Não adianta criticar”, referindo-se aos grotescos donos do poder hoje em dia, as salamandras de Čapek me vêm ao espírito. Não adianta criticar, porque as críticas não pegam. Elas se dissolvem numa atmosfera mefítica maior e pior do que as pessoas. Essa atmosfera não é apenas brasileira, embora tenha se concentrado muito no Brasil, país hoje na vanguarda do horror.
Quero dizer que, pior do que os homens, pior do que as circunstâncias, são os valores e convicções reinantes que se disseminam como miasmas, como pestilência. Não há refúgio: no final do livro, os tchecos, longe do mar, acreditam-se seguros, até que uma salamandra aparece, subindo o rio Moldava.
Crenças perversas atingem os comportamentos que se modificam de modo imperceptível, e o horror acomoda-se, aos poucos, como “normalidade”.  Críticas continuam inócuas, porque a peste não se altera com críticas. Enquanto não houver oposição que se una e combata como força coesa, capaz de resistir e, mais, de vencer, nada mudará. Enquanto se dispersar e enfraquecer em pequenas estratégias políticas e eleitoreiras, enquanto permanecer em suas divisões, as salamandras serão triunfantes.  

P. S. - Soube que há uma edição de R. U. R - Robôs Universais de Rossum. pela editora Hedra (clique aqui) Difícil de achar por duas razões. Mudaram o título, conhecido internacionalmente, para A fábrica de Robôs - o que é particularmente infeliz porque Čapek tem um romance chamado A fábrica de Absoluto - e mudaram a grafia internacional do sobrenome do autor para Tchapek. O que não prejulga bem a qualidade da tradução...


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