Religiões criminosas e profecias

Há profetas e profetas. Karel Čapek é o mais certeiro, não tenho dúvidas. Que sua obra não se encontre publicada, ou disponível, no Brasil, expõe uma triste negligência editorial.

"Grande escritor de um pequeno país", se expressou a seu respeito Jeanne Bem, especialista em literatura tcheca. Talvez sua projeção sofra por ele ter escrito em tcheco, sua língua natal, ao contrário de Kafka, que empregou o alemão, e de Kundera, que se quer francês.

Čapek não é apenas um profeta. É um perfeito analista da sociedade de seu tempo e do nosso. Viveu apenas 48 anos (1890-1938). 


Museu da Termoelétrica Giovanni Montemartini - Roma

Enquanto os paulistas se deliciavam com um modernismo mundano no Teatro Municipal, Čapek publicava, em 1922, um livro inaudito de vigor novo: A fabrica de Absoluto. Inspira-se num tema filosófico expressamente citado. Reúne Spinoza, Leibnitz e Gustav Feschner, o fundador da psicofísica. A fábrica de absoluto parte do princípio que Deus, ou o Absoluto, está contido na matéria. Não que o autor acredite nisso.

Um engenheiro descobre que a quebra do átomo produz a energia mais econômica que existe. A fantástica descoberta se espalha pelo mundo. Mas ela contém uma consequência inesperada: a fissão não apenas libera energia, como também o divino que está dentro da matéria. Um divino, ou absoluto,  que jorra descontrolado.

A igreja católica é a primeira a se manifestar contra esse descontrole. Um bispo se exprime assim:

"Senhores, não creiam, eu lhes conjuro, que a Igreja faz com que Deus penetre no mundo. A Igreja apenas o contém e canaliza. Vocês, senhores ateus, vocês O libertam como uma inundação!"

John Martin - O Grande Dia de Sua Ira - 1851-3

Todos os que se expõem à irradiação dos carburadores (das máquinas que produzem a energia atômica), imediatamente se tornam místicos, são capazes de milagres, e consagram sua vida ao amor do próximo.

É uma catástrofe. A economia vai por água abaixo e, sobretudo, a espiritualidade mística se agrupa em facções. Mais o Absoluto se alastra, mais os homens se dividem, porque o transformam num deus específico. Mesmo os ateus o transformam numa crença política. Os conflitos se multiplicam, até explodir numa guerra mundial arrasadora.

A história começa em 1943. A grande guerra de Čapek  se termina em 1953. Como ele morreu em 1938, não pode constatar suas previsões: Segunda Guerra Mundial, energia atômica, e agora, surgimento de uma religiosidade endoidecida, controladora, autoritária e muitíssimo violenta.



Religiosidade que se infiltra como um vírus letal no governo de tantas nações.


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Trechos

"Ele encoraja as pessoas para que sejam como os lírios do campo. Tem uma barba até aqui, até a cintura. É assustador perceber quantos barbudos existem agora."

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"Na universidade, hoje, a Faculdade de Ciências lutou contra a Faculdade de Letras. Você sabe, a Faculdade de Ciências nega a revelação, ela é, de algum modo, panteísta. (...) Os estudantes de história ocuparam a biblioteca e se defenderam desesperadamente usando livros como projéteis (...) Os bombeiros estão trabalhando agora lá. Já retiraram sete mortos, entre os quais três doutorandos. Creio que há mais de trinta pessoas soterradas."

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"26 de março: Os Estados da América do Sul enviam um ultimato aos Estados Unidos. Pedem a abolição da lei seca e a proibição da liberdade de religião."

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"Pois bem, a guerra, que durou do 12 de fevereiro de 1944 ao outono de 1953, foi de fato, e palavra de honra, sem exagero, 'a maior das guerras' ".

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"Parece que existiam máquinas de religião."

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"Aquele que enfia alguma coisa na cabeça, quer que todos os outros acreditem também."

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"... enquanto pelo mundo afora, os exércitos travam combates históricos, "um futuro melhor está nascendo", como afirmam os intelectuais de todos os campos."

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"As pessoas não compreendem que os outros não acreditem nas mesmas coisas que elas."

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"Cada um acredita no seu Bom Deus, que ele acha excelente, mas não acredita que outra pessoa possa também acreditar em alguma coisa de bom. Os homens deveriam primeiro acreditar nos homens e o resto viria de outro jeito."

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"O senhor sabe, quanto maior a coisa em que acreditamos, mais nos obstinamos em desprezar os que não acreditam. E, no entanto, a maior Fé de todas, seria de acreditar no homem."

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"Todo mundo está cheio de boas intenções em relação à humanidade, mas em relação a um indivíduo qualquer, isso não! Eu mato você, mas salvo a humanidade. (...) O mundo será ruim enquanto os homens não começarem a acreditar nos homens."

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"Eles oravam, cantavam, e tinham visões. Previam o futuro, faziam milagres e um monte de coisa desse jeito.
-É proibido?
-Sim, é proibido pela polícia. O senhor sabe, é como essas casas em que se fuma ópio."



Karel Čapek - Ilustração para A fábrica de absoluto

É impossível dar uma ideia adequada da complexidade de A fábrica de Absoluto.

Karel Čapek, junto com seu irmão, inventou a palavra "robô". Escreveu a peça "O caso Markrópulos", que deu origem à ópera do mesmo nome, composta por Leoš Janáček. Seu romance mais conhecido é A guerra das salamandras.


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