O assassinato de Winckelmann

Há, na cidade de Trieste, um monumento que mostra, na sua parte inferior, um baixo relevo. Seu autor é Antonio Bosa. Foi terminado em 1822. Antonio Canova teria visto e aprovado o projeto.


O relevo mostra sete alegorias. A primeira, sentada e buscando escrever em um enorme alfarrábio, é a Arqueologia. De pé, avançam a Filosofia, a Crítica e a História, a Arquitetura, a Pintura e a Escultura. Elas seguem, atentas, interrogantes, um homem que ilumina esculturas e medalhas da antiguidade. Esse homem é Winckelmann.



Winckelmann foi o fundador da moderna história da arte, em que o raciocínio se faz a partir das obras, e não pela biografia dos artistas. Seus escritos tornaram-se o suporte teórico para a arte neoclássica. Sua concepção da arte greco-romana como paradisíaca, produto de uma eterna primavera que pairava então sobre o espírito humano, banhada em "nobre simplicidade e tranquila grandeza", como escreveu em fórmula que se tornou muito célebre, teve um impacto enorme sobre a cultura do ocidente, e imenso sobre a cultura alemã. Não creio que o princípio apolíneo de Nietzsche pudesse existir sem Winckelmann, e o pathosformel de Warburg criou-se, estou convencido, em reação a Winckelmann.

Em 1768, Winckelmann tinha 50 anos. Era famoso. Acumulava as funções de Bibliotecário do cardeal Albani, Prefeito das Antiguidades Pontifícias, Secretário da Biblioteca Pontifícia, Antiquário da Câmara Apostólica, Superintendente das Antiguidades de Roma.  Havia feito uma viagem para Viena, onde fora recebido pela imperatriz Maria Teresa, que o honrou com valiosas medalhas de ouro e de prata.


Em agosto de 1767, Anton von Maron, pintor da mais sofisticada aristocracia, retratou Winckelmann no seu momento mais glorioso, com um robe de chambre em seda arrematado por peles preciosas. No fundo um busto, talvez de Homero, simbolizando a cultura antiga. Sobre a mesa, a gravura de um jovem efebo, de torso nu.
Essa alusão justifica-se porque o grande erudito era o maior especialista da arte clássica no seu tempo. Mas ela também sugere outro traço que o caracterizava. Winckelmann era homossexual.



É bem conhecido o episódio em que seu amigo, o pintor Anton Raphael Mengs, querendo mostrar-se a altura dos grandes artistas da Roma antiga, pintou um afresco e apresentou-o como descoberta arqueológica a Winckelmann, que se entusiasmou pela pintura, ratificando-a não apenas como autêntica, mas como verdadeira obra-prima. Para melhor seduzir Winckelmann, Mengs escolhera de propósito uma cena homoerótica: Júpiter beijando Ganimedes,
Winckelmann teve paixões, às vezes platônicas, às vezes não, por belos jovens. Por isso mesmo, sua morte possui algo de estranho.


Winckelmann voltava da Áustria. Teve que parar em Trieste, esperando algum navio que pudesse conduzi-lo a Ancona, e assim prosseguir para Roma. Hospedou-se anonimamente na Osteria Grande, na praça que se abre para o porto. Engraçou-se por um seu vizinho de quarto, de nome espiritual: Francesco Archangeli. Uniram-se em estreita amizade. Faziam as refeições no quarto, saiam juntos para passear, tinham longas conversas a dois. Winckelmann não revelou sua identidade a Archangeli, mas contava histórias fantasiosas nas quais dava a entender que tinha um estatuto de agente secreto. Winckelmann lhe mostrou as medalhas em metal precioso que a imperatriz lhe havia oferecido - elas foram copiadas no processo (vide acima) Archangeli comprou uma corda e uma faca. Foi ao quarto de Winckelmann e pediu para ver as medalhas de novo. Winckelmann recusou, Archangeli tentou enforcá-lo. Como não conseguiu, deu-lhe várias facadas. Um camareiro, atraído pelos gritos, entrou no quarto. Archangeli fugiu, e buscaram um médico. Sete horas depois, Winckelmann morria.
Archangeli era italiano, cozinheiro, e fora à Áustria para trabalhar. Roubou na casa que servia, foi preso, condenado a quatro anos de galés. A pena foi encurtada para um ano, e o réu banido do império austríaco. Voltara clandestinamente para a Itália.



Tudo isso parece compreensível. Seduzido por um jovem criminoso, Winckelmann foi sua vítima.
O estranho, no caso, é que esse Francesco Arcangelo, de 34 anos, é descrito como de traços grosseiros e marcado pela varíola. Nada em comum com a beleza elevada, ideal, dos jovens retratados na escultura antiga. Podemos imaginar que o ano passado nos trabalhos forçados não devia melhorá-lo fisicamente. Sem contar o contraste mental entre o grande sábio e o cozinheiro quase analfabeto.

Como compreender essa atração? Nem arrisco explicar. Apenas penso no rosto tosco e arruinado pelas cicatrizes da doença: haveria ali algo de equivalente às esculturas machucadas pelo tempo que a arqueologia encontrava? Uma imperfeição que pressupõe a perfeição melhor, porque ideal, imaginária?

O caso de Winckelmann encontra um paralelo na morte de Pasolini, ocorrida em 1975. O arqueólogo e o cineasta tinham aproximadamente a mesma idade. Pasolini não se interessava por jovens sofisticados e de beleza fina, como Alain Delon e Helmut Berger atraíram Visconti. Ia à caça de rapazes populares que se prostituíam na Stazione Termini de Roma, como Pino Pelosi, seu assassino.



Pelosi também era semianalfabeto, de origem popular. Ele lembra o ator favorito de Pasolini, Nineto Davoli.


Uma fotografia de Pasolini com seus atores parece demonstrar que qualquer um deles poderia encarnar o papel de Francesco Archangeli.


Francesco Archangeli foi capturado e condenado ao suplício da roda. Diante da Osteria Grande, onde cometera o crime um mês e meio antes, teve seu corpo desarticulado até morrer O corpo de Winckelmann, enterrado na cripta de catedral, foi depois transferido para a fossa comum.
Seu monumento, em Trieste, é um cenotáfio, ou seja, um memorial fúnebre, e não um túmulo. Foi inaugurado em 1833.


Foi instalado no jardim lapidário de Trieste, hoje compreendendo o Civico Museo di Storia ed Arte, que abriga uma coleção arqueológica de valor. Depois construiu-se uma sala com o aspecto de templo coríntio, para abrigar as esculturas mais preciosas do jardim. O monumento a Winckelmann foi transferido para ali, de modo a melhor preservá-lo.



O monumento a Winckelmann está cercado por esculturas da antiguidade  numa bela relação de arte e conhecimento.


Comentários

  1. Jorge, como sempre um post espetacular. Incrível a semelhança dos fatos entre Winckelmann e Pasolini. E também não posso deixar de pensar em Caravaggio.. enfim, como sempre um prazer ler o "Amável Leitor". Continue firme! Um grande abraço! Fernando Belletti.

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