Em uma
paisagem calma, no crepúsculo, avistamos dois personagens. Um senhor, cuja
musculatura mostra-se potente e um garoto, desfalecido em seus braços. A barba e
os cabelos brancos denotam a idade do senhor que nada atrapalha sua força, a
estrutura do corpo apresentado é contrastante àquela do rosto. Em sua mão direita, um cajado os ajuda a atravessar pelo caminho. O garoto é conduzido e
aparenta estar sem energias, os cachos ruivos macios enaltecem a pele jovem de
sua face. Contorcida em seu tornozelo esquerdo, uma cobra é levada, com eles, no trajeto.
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François Gérard. Bélisaire. 1797 |
Trata-se
da famosa obra de François Gérard, Bélisaire
de 1797. Na história, o grande general de Justiniano é acusado de participar do complô contra
o imperador, em 562. Recupera seus direitos pouco depois. No entanto, a obra de
Gérard faz eco ao romance homônimo de Jean-François Marmontel, lançado trinta anos antes de seu quadro, e às pinturas de mesma temática de Jacques-Louis David, ambas mostrando a iniquidade e também a cega condenação apressada pelos comandantes. Na tela de Gérard, o garoto sendo levado por Belisário é o seu guia, que acabara de ser picado por uma
cobra. A figura mítica de Belisário ganha contornos mais dramáticos, com a
indicação do castigo imposto por Justiniano: tirar-lhe a visão. De alguma forma a
cegueira dos poderosos frente aos fatos, poderia ser colocada em relação à condição imposta a Belisário.
Meu
ponto principal, todavia, é outro. Belisário carrega aquele que seria seus
olhos. Aparece como alguém superior, com uma visão interna, por assim dizer. A
cegueira de Belisário não o impede de ver além. Se o caminho pode ser tortuoso
e a queda uma possibilidade, a força e precisão do caminhar contrapõem essa
ideia.
Esse
tema que tomo emprestado a partir de Gérard tem ramificações interessantes. A
rigor, um mundo suplantado pelo excesso de visibilidade não mais vê. É preciso,
nesta lógica, centrar-se em outra realidade não governada pela visão.
De modo
geral e simplista é a procura de Péladan, um mundo essencialmente regido pela
imaginação, pelo mundo interior e não àquele da superficialidade. De raspão,
isso aparece em outro post:
Lembro
de dois casos em particular, o primeiro é de André Gide, mais especificamente
seu romance La symphonie Pastorale de 1919. A história é centrada no
personagem do Pastor que narra os acontecimentos de como acaba por cuidar de
Gertrude. Ela, cega e órfã, muda-se para a casa do Pastor, com sua mulher e seus cinco
filhos. A proximidade entre os dois, as confidências etc. fazem com que o pastor se apaixone por ela, ao mesmo tempo que seu filho, Jacques, demonstra igualmente sentimentos por Gertrude. Não quero proceder
na história do romance, contudo, uma cena é preciosa para o tema aqui
proposto.
Ela
é levada a um concerto pelo Pastor, ali tocam a sexta sinfonia de Beethoven, a Sinfonia pastoral. Entusiasmada, não se
furta em perguntar para ele:
“Muito
tempo depois de termos saído da sala de concerto, Gertrude ainda estava em
silêncio e afogada em êxtase. ‘O que você vê é realmente tão bonito quanto
isso?’ Ela disse finalmente.
“Tão
bonito quanto o quê? Minha querida.”
“Do
que essa “Cena à margem do riacho”.
É a
primeira cena do segundo movimento da sinfonia. Gertrude tem acesso a um mundo
particular e em especial não “contaminado” pela visibilidade, por assim dizer.
Ela conhece uma saída, uma operação é capaz de restitui-la à visão, a questão é
saber como ela reagirá acessando um mundo terreno.
Por outro
lado, a obra de Maurice Maeterlinck situa-se comumente no simbolismo belga. Os
personagens cegos sejam na peça Les
aveugles, de 1890 ou em Pélleas et Mélisande,
de 1893 possuem um ponto considerável em seus escritos.
Les
aveugles, peça com ato único, usa a cegueira como uma metáfora. Não temos
acesso a um mundo outro. A angústia é apenas o início, e é preciso se reconhecer
e também aos outros e ao espaço o tempo inteiro. Contrário de Gertrude, os
cegos de Maeterlinck podem ser postos como nós, que vemos e continuamos cegos,
na ignorância de um mundo estúpido.
Poderíamos
nos alongar, mas lembro apenas do forte filme de Fede Alvarez, Don't Breathe, 2016. Ali, a cegueira é
encarada de primeiro momento como fragilidade ou nas lentes de assaltantes como
presa fácil. Mas, quando a luz da visão é interrompida, o que de extremo sensitivo
pode retornar? Qual mundo é vislumbrado? Para Alvarez o acesso a um outro mundo
pela cegueira é contaminado pela podridão de nossa própria visão. Os sentidos
aguçados são os velhos sentidos da sobrevivência.
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