Paira na cultura do Brasil, desde os tempos da colônia, a incapacidade de observação, o horror ao realismo. Fora poucas exceções, o século 19 inventou lentes líricas que filtraram o visível. Óculos de sonhos. Tudo era imaginário, tudo lírica e confortavelmente "brasileiro". Selvagens atléticos, índias sensuais, quase sempre morrendo bonito no fim das histórias. Nada de negros escravos, de crueldade, de pobreza.
Rodolfo Amoedo - O último tamoio - 1883 - MNBA |
Por sorte, vieram viajantes estrangeiros. Registraram o que viam, aquilo que os locais preferiam ignorar. Sem eles, não haveria imagens da sociedade brasileira nos tempos antigos.
Debret, francês, Rugendas, alemão, foram mais do que grandes artistas: criaram vivos retratos do que percebiam. Landseer, inglês, acompanhou uma expedição ao Brasil em 1825-26; seu diário visual, arrematado na Christie's de Londres há alguns anos pelo Instituto Moreira Salles, é um tesouro.
Ver com cuidado as muitas folhas que ele deixou, é acompanhar o percurso de Lisboa ao Rio, as visitas a São Paulo (mirrado lugarejo), Salvador, Recife, Olinda, Vitória, Desterro e Santos.
Charles Landseer - Bananeiras - IMS |
Landseer foi sensível à paisagem natural ou construída pelo homem e aos tipos humanos: d. Leopoldina cavalgando, vista de costas, escarrapachada na sela, enfiada num guarda-pó, parecida com uma trouxa de roupa; d. Pedro, garboso e pimpão, com o traseiro relevante dos Braganças, enganchado numa eguinha crioula.
Clarles Landseer - D. Leopoldina - IMS |
Charles Landseer - D. Pedro - IMS |
Vista do Pão de Açúcar tomada da estrada do Silvestre, 1827 - Charles Landseer - Pinacoteca do Estado de S. Paulo |
Charles Landseer - Escravo na Ilha do Governador. 1825-1826. IMS |
Charles Landseer - Sertanejo - IMS |
Landseer deixou, como Debret, testemunhos dos abomináveis castigos infligidos a escravos. No fundo, um personagem indiferente, contemplativo, deitado: o mal tornara-se "natural". A menos que seja outro negro que, tendo recebido o castigo, repousa exausto. O mal continua "natural", de todos os modos.
Outro estrangeiro: Hercules Florence (1804-79). Nasceu na França, viveu e morreu em Campinas (SP). Seu gênio inquieto o levou a buscas incessantes. Chegou, antes de todos, à fotografia.
Criou um modo de anotar o canto dos pássaros; quebrou a cabeça com processos originais de reproduzir textos e desenhos, imaginou a tipografia silábica, um rol de coisas. Desenhou, aquarelou, traçou imagens únicas retratando cidades, fazendas, paisagens do interior, derrubadas de matas.
Foi um supremo aquarelista, que atinge o apogeu em estudos de nuvens. Hercule Florence,
Canoa de indios Guatós, ao pôr do sol, c.a. 1835
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Concebeu paisagens para serem vistas com luz em transparência. Graças a furinhos no azul da noite, brilham, mágicas, a lua e as estrelas.
Teve ainda tempo de se casar duas vezes. Pôs 20 filhos no mundo.
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