As moças de Susan Meiselas



fotografia da capa da 1ª. edição de Carnival Strippers, 1976 de Susan Meiselas.


De 1972 a 1975 a fotógrafa americana Susan Meiselas passou os verões acompanhando a vida de strippers que trabalhavam nos chamados Carnivals, uma espécie de circo com entretenimento erótico para o público masculino. O show itinerante passou por cidades da Nova Inglaterra, Pensilvânia e na Carolina do Sul. Enquanto seguia a trupe de cidade em cidade, Meiselas retratava as dançarinas no palco e fora dele, fotografando as apresentações e suas vidas particulares. Aos modos de um trabalho etnográfico a artista também gravou entrevistas com as mulheres, seus namorados, os gerentes dos shows e os clientes.  

O registro resultou em um livro lançado em 1976 (uma edição revisada foi publicada em 2002).  A primeira edição teve 150 páginas com 73 imagens acompanhadas de transcrições das entrevistas. Nas falas há diversidade de olhares sobre o comércio sexual. Algumas reafirmam posturas da cultura machista: “Agreeing with you, living with you, taking care of your clothes – that’s what a woman’s for” (fala de cliente),  outras retiram as mulheres de posição de vítimas e colocam o entretenimento sexual na categoria de uma profissão capaz de garantir independência financeira: “To me, there’s rich people, right, rich and high and sophisticated, and then there are these people who have to worry and have to fight for what they want…You gotta eat. When you eat and get your own money, that makes you your own woman. You don’t ask nobody for nothing.” (fala de Debbie, uma das strippers)

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, Patty’s Show, 1974. Tunbridge, Vermont, EUA.

Susan Meiselas abusa de ângulos, recortes e enquadramentos que criam a sensação de proximidade, como se estivéssemos acompanhando de perto as cenas presenciadas pela fotógrafa.

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-75. EUA. Acervo: Magnum Photos.

Meiselas transforma o observador em espectadores do show.


Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, Before the show, 1974. Tunbridge, Vermont, EUA.

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

O público não passa despercebido pelas lentes da fotógrafa. As fotos capturadas do palco foram realizadas com a câmera posicionada ao nível do chão e na altura dos rostos dos espectadores. É deste lugar privilegiado que observamos as expressões de cada homem.

 
Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

Já nas cenas de sexo explícito as lentes se distanciam e a imagem perde nitidez.  

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

Fotografia da série Carnival Strippers. Between shows, 1975. Freyburg, Maine, EUA.






As cenas dos bastidores são retratos intimistas. 
Imagens borradas, corpos desfocados em movimento, gestos comuns, trocas de roupas, despir-se, arrumar o cabelo ou apenas descansar, garantem o caráter de espontâneo.


Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

Edgar Degas. Woman Drying Her Foot, 1885-86, 50 x 54 cm. Acervo: Metropolitan Museum of Art, New York.

Algumas das fotografias lembram os banhos criados por Edgar Degas. As poses são incômodas. Flagramos momentos íntimos e gestos plasticamente desconcertantes. Degas cria instantes que parecem flagrantes registrados por uma câmera fotográfica.    


Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1972-1975, EUA. Acervo: Magnum Photos.

As fotos revelam uma beleza não idealizada. Quero dizer, o olhar de Meiselas desvela, além da nudez, a marca da vida real. Não são corpos inatingíveis como os das modelos das revistas masculinas ou de atletas. Esbeltas ou não, os seios, ventres e coxas evocam carnalidade, no sentido mais literal. Os corpos apresentam marcas da mortalidade: cicatrizes, envelhecimento e maternidade.


Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, 1975. Tunbridge, Vermont, EUA.

Susan Meiselas.Fotografia da série Carnival Strippers. Coffee, 1975. Carlisle, Pennsylvania, EUA.

Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, Mitzi, 1974. Tunbridge, Vermont, EUA.    
Dentro da série há um conjunto de retratos. São fotografias relativamente formais, mas há uma certa liberdade: as mulheres se exibem com poses altivas, escolhem o modo e as partes do corpo que desejam exibir.


Susan Meiselas. Fotografia da série Carnival Strippers, Shortie, 1973. Presque Isle, Meine, EUA.

Os retratos são muito contrastantes com as cenas dos bastidores que indicam registros introspectivos, entediadas as mulheres se distanciam da animação encenada nos palcos.  


Em 2015 o museu D’Orsay realizou uma exposição sobre imagens da prostituição dos anos de 1850 a 1910. Evidentemente a exposição explorou imagens que transitavam da Olympia de Manet a L'Absinthe de Degas, também as cenas criadas por Toulouse-Lautrec e Munch e até figuras ousadas de Vlaminck, Van Dongen ou Picasso.


Autor desconhecido. Etudes de nu, femme assise bras croisés, c.1900-1910. Imagem exposta na mostra Splendeurs et misères. Images de la prostitution, 1850-1910, Museu D’Orsay, 2015.

Na exposição do museu francês, a sessão dedicada às fotografias apresentavam retratos das cortesãs mais famosas e também de prostitutas desconhecidas. Alguns retratos são carregados de expressividade o que sugere dúvida: teriam as modelos escolhido suas poses?


Imagem exposta na mostra Splendeurs et misères. Images de la prostitution, 1850-1910, Museu D’Orsay, 2015.

Há cenas de descontração, talvez momentos de pausas durante a jornada de trabalho.


Vida Difícil. Fotografia das páginas 124-125 da Revista Realidade. Ensaio fotográfico de Claudia Andujar, julho de 1968. Acervo: biblioteca ECA/USP.


No Brasil, a extinta revista Realidade publicou em 1968 um ensaio de Claudia Andujar sobre prostitutas. As 12 fotografias acompanhavam o texto de Mylton Severiano da Silva. Os registros se preocupam em apresentar casas e os interiores habitados pelas mulheres. Andujar prefere não dedicar atenção para os contornos corporais das mulheres.


Vida Difícil. Fotografia da página 126 da Revista Realidade. Ensaio fotográfico de Claudia Andujar, julho de 1968. Acervo: biblioteca ECA/USP.

Nas fotos acima o ambiente solitário é evidenciado pelos personagens que figuram nas casas: dois gatos ao sol, duas pessoas na entrada de uma moradia e a vista de uma janela que apenas exibe a parte superior da casa vizinha.   

Vida Difícil. Fotografia da página 129 da Revista Realidade. Ensaio fotográfico de Claudia Andujar, julho de 1968. Acervo: biblioteca ECA/USP.

Nas 5 fotografias acima o cenário muda. Indícios eróticos são criados pela segmentação dos corpos, como peças isoladas de um quebra-cabeça, exibem partes que não revelam muito. As imagens possuem filtros de tonalidades quentes e os recortes indicam alguma lascividade.  


Vida Difícil. Fotografia da página 127 da Revista Realidade. Ensaio fotográfico de Claudia Andujar, julho de 1968. Acervo: biblioteca ECA/USP.

Ao comparar o ensaio de Andujar com Carnival Strippers, se percebe que traços da vida real não são evidenciados na carne. No entanto, a composição acima não deixa de sublinhar os acontecimentos do mundo real. Ao lembrar o observador que na prostituição, como em qualquer outra profissão, a mulher também precisará dividir sua vida profissional com a maternidade.

Gabriela Leite (1951-2013) grande ativista pelos direitos das prostitutas no Brasil e que foi puta (palavra que ela fazia questão de usar), em sua autobiografia Filha, mãe, avó e puta (2009) faz uma observação que de algum modo recorda as imagens criadas por Meiselas e Andujar: “O que a puta tem que as outras mulheres não têm? Nada. O que as outras mulheres têm que a puta não tem? Nada.”



Comentários