De Ticiano a Pollock: outras chuvas douradas


Fazer xixi, mijar, urinar, tirar a água do joelho. O assunto esteve em pauta no encerramento de nossas festividades carnavalescas deste ano.

A ciência nos fala do sofisticado sistema de filtragem do corpo, que recicla subprodutos úteis do metabolismo e concentra o que restou nesta solução dourada que contém água, ureia, sais, amoníaco e outros resíduos químicos. Alguns desses resíduos tornaram a urina muito atrativa. Se dermos uma folheada na compilação do estudioso do século XIX, John Gregory Bourke (1846-1896), no seu livro sobre rituais escatológicos, publicado em 1891, veremos que o xixi tinha diversas utilidades, até livrava pessoas de bruxaria: bastava urinar na aliança do amaldiçoado para libertá-lo do feitiço. Em outros momentos, na ausência do sabão, para lavar a pele, cabelos e roupas, preservar e embranquecer os dentes, nada como uma boa porção de urina! Alguns reis eram untados de urina nas suas coroações.

 
Ilustração do manuscrito alquímico Speculim Veriatis, autoria atribuída a Eirenaeus Philatlethes, século XVII.

Para a alquimia aspecto dourado da urina simbolizava algo precioso. A fluidez e acidez deram ao líquido o caráter de solvente, um agente de transformação. A biblioteca do Vaticano possui um compêndio de alquimia do século XVII que contém a ilustração acima: um pequeno homem, sustentado por nuvens, habilidosamente urina nos três recipientes de experimentos dos alquimistas. A urina fornece a substância para o trabalho de transformação dos alquimistas.

Na mitologia hindu, a urina de um deus poderia ser algo desejado pelos seus devotos. Em uma das invocações à divindade Rudra, no texto Rig Veda, recita-se o seguinte: “Que alcancemos ao teu favor, Oh governante de heróis, criador da bondosa água... Tu que abençoaste com as águas de teu corpo, sê piedoso com os nossos filhos e netos”

O xixi ou o ato de urinar também aparecem como tema em obras de arte e, ao contrário das recentes atitudes alucinatórias do presidente do Brasil, o fluido corporal foi instrumento de debates e confrontos importantes promovidos por alguns artistas.
  
Andy Warhol. Oxidation Painting, 1977-1978. 

Em 1978 Andy Warhol apresenta uma elegante série de telas que ele chamou de Oxidation Paintings. Depois de serem cobertas por camadas a base de cobre e tinta, as telas recebiam jatos de urina. O líquido oxidava a tinta e os resultados transformavam as cores. Os jatos formaram elementos abstratos. Os resultados são diversificados, os respingos de urina criaram formas variadas e cores iridescentes. Entre uma tela e outra, as composições nunca se repetiam. O que se diz é que não era só Warhol que fazia xixi nas obras. Bob Colacello, em seu livro Holy Terror, de 1990, afirma que o artista até pagou um amigo mais próximo para urinar nos quadros. Colacello também afirma que Warhol preferia a urina de seu modelo Ronnie Cutrone, porque o xixi dele continha o teor de acidez mais alto, transformando com intensidade a superfície da tela. Na anotação de 28 de junho de 1978 de seu diário Warhol diz: “Não mijei em nenhuma tela esta semana. Isso é para as pinturas “Piss”. Pedi que Ronnie não mijasse quando acorda de manhã – que tentasse segurar até chegar ao escritório, porque ele toma uma porção de vitamina B e as telas ficam com uma cor linda quando é o mijo dele”.

Robert Mapplethorpe. Jim and Tom, Sausalito, 1977. Fotografia. Acervo J. Paul Getty Museum.

Um ano antes da série de Warhol, Robert Mapplethorpe fotografou Jim and Tom, Sausalito. A cena é ousada. Um homem em pé, sem camisa, usando uma mascara - típico apetrecho das atuações sado masoquistas – veste calças e botas do mesmo material. Para posicionar melhor o jato de seu pênis, ele inclina o tronco para trás enquanto direciona a urina na boca de outro homem. O parceiro de cena está ajoelhado e olhos fechados. A luminosidade lembra as iluminações cênicas. A escada de ferro, a parede pichada e revestida por um concreto grosseiro, e ainda o chão com restos de pedras e alguma sujeira, indicam um local urbano, um beco ou um local abandonado, subterrâneo talvez. Mapplethorpe desvela o que não se espera ser exposto: a intimidade sexual.

Charles Demuth. Three Sailors urinating, 1930. Aquarela e caneta sobre papel. Coleção particular.

Embora seja um momento de intimidade, a anatomia masculina inevitavelmente expõe o órgão sexual ao urinar. Observar um homem fazendo xixi pode funcionar como elemento para jogos de sedução. O trabalho de Charles Demuth trata desse erotismo.


Alair Gomes. Fotografia, s/d. Acervo Robson Phoenix.

Assim como Demuth, o fotógrafo Alair Gomes também capturou o tema. Na cena acima, é evidente o interesse do caráter erótico na exibição do pênis no momento de urinar.

Para Jung, a urina denota urgência de expressar-se. Também para o psicanalista junguiano Edward Christopher Whitmont (1912-1988), tal urgência é fluxo que necessita ser externalizado. Talvez por isso, na história da arte o tema foi protagonista de muitas obras.

Harmenszoon van Rijn REMBRANDT. Abduction of Ganymede,1635. Óleo sobre tela, 171 x 130 cm. Acervo: Gemäldegalerie, Dresden.

Na cena de Rembrandt o medo de Ganímedes ao ser levado por Zeus, transformado em águia, é evidente. Além da impressionante expressão facial de desespero da criança, Rembrandt exibe a urina que é liberada como consequência desse pavor sofrido pelo pequeno Ganímedes.

Vecellio Tiziano. Bacchanal of the Andrians, 1523-24. Óleo sobre tela, 175 x 193 cm. Acervo: Museo del Prado, Madrid

Vecellio Tiziano. Bacchanal of the Andrians, 1523-24. Detalhe. Óleo sobre tela, 175 x 193 cm. Acervo: Museo del Prado, Madrid

No caso da cena de Ticiano, fazer xixi apresenta outro aspecto. A cena retrata a festinha de recepção a Baco, que retornaria para a ilha de Andros. Observamos diferentes graus de embriaguez e muitas garrafas de vinhos sendo ingeridas. Não há desaprovação moral e o humor é elegíaco e tolerante. Ticiano não hesita em descrever com humor os aspectos mais orgânicos de um bacanal. No detalhe, o cupido levanta as vestes para direcionar melhor no solo o seu delicado jato de urina.

Pieter Bruegel. Twelve Proverbs, 1558. Painel de madeira, 75 x 98 cm. Acervo: Museum Mayer van den Bergh, Antwerp.

Pieter Bruegel. Pissing Against the Moon, 1559, óleo sobre painel.  Coleção privada.

Bruegel retrata mais de uma vez um homem de costas urinando na lua. Abaixo da cena, o provérbio inscrito diz: “O que quer que eu faça, eu não me arrependo, continuo mijando contra a lua”. O símbolo lunar que recebe o xixi, aparece no brasão do quadro Provérbios holandeses, de 1559. Aqui a urina não representa mais o medo ou prazer. Mijar na lua é uma critica, com humor ácido (literalmente!), chama atenção para a teimosia e para a insensatez.

Fazer xixi como protesto, remete ao rumor propagado na biografia de Jackson Pollock - escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, Jackson Pollock: an American saga (1989) – que diz que o pintor urinava nas telas antes de entregá-las, caso o destinatário fosse alguém que ele não gostasse.

Andres Serrano. Piss Christ, 1987. Fotografia. Imagem da Sotheby’s

Andres Serrano causou muito debate ao expor uma série de fotografias nas quais objetos tradicionais da cultura judaico-cristã aparecem mergulhados em um tanque de vidro preenchido pela urina do próprio artista. As cores são um elemento à parte. O amarelo, que remete ao dourado, se sobrepõe ao fundo vermelho destacando a imagem de Jesus crucificado. O rearranjo entre líquido e cores cria profundidade, lembram esses objetos perdidos no fundo do mar. Se o título não denunciasse o material usado para compor a obra, teria causado tanta polêmica?

A urina é quente, intensa. Pode representar ressentimento, fúria. No inglês há a expressão “pissed off”, usada em situações em que se está muito bravo, furioso.
Talvez o trabalho de Serrano, ao urinar em símbolos religiosos, tenha algo de fúria. Quando a obra foi exibida pela primeira vez o artista disse: “Piss Christ é uma reflexão sobre meu trabalho, não só como artista, mas como cristão.”

Serrano ainda ressalta: “Se Piss Christ incomodou você, talvez seja bom pensar sobre o que aconteceu na cruz.” A sugestão também serviria para um presidente tão incomodado com o tema...

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