A caça e o caçador (ou: de certa paixão por armas)


O quadro é escuro. Representa uma mata fechada. Dois caçadores de corpo inteiro se destacam das sombras. Observam algo, decerto, que acaba de ser encontrado. Um deles se apressa a atirar; o outro parece contê-lo. Pede calma. É o mais experiente, como indicam os cabelos e a barba grisalhos, bem como a luz mais intensa no rosto, o posicionamento aberto, amplo na composição. Sua paciência contrasta a uma leve tensão, maior, do colega, cujas expressões, sobretudo os olhos, assombreados pela aba do chapéu, guardam alguma insegurança.

Caipiras negaceando, o imenso quadro do pintor ituano Almeida Júnior, recebeu o Prêmio Aquisição na Exposição Geral de Belas Artes, no Rio de Janeiro, em 1890. Tem quase três metros de altura, servindo bem ao propósito de exibição para um grande público. Ele releva de maneira incomum, para a época, no Brasil, a representação pictórica de personagens anônimas e populares. Em 1888, exposto em São Paulo, teria sido ovacionado pelos partidários do regime republicano, que identificaram, por meio da obra, a expressão autêntica da arte brasileira.


A tela de Almeida Júnior corresponde, por outro lado, a uma moda do tema na pintura internacional, em particular de origem inglesa e francesa, cujo impulso se deu em meados do século XIX. A representação artística da caça, frequente desde inscrições rupestres, se multiplicou em frisas da antiguidade e encontrou um precursor moderno, abordando o assunto específico de que tratamos, talvez, no quadro que vemos acima, atribuído a um obscuro pintor irlandês do século XVIII, um tal John Butts, conhecido por falsificar paisagens flamengas. Nesse quadro, se comparado ao brasileiro, misturam-se o pitoresco e o sublime em um cenário que apequena os homens. Estes, porém, estão em maior número e mais espalhados, dividindo-se em dois grupos. Um rifle dispara, mas mesmo assim a mãe-natureza parece não dar a mínima ao acontecimento.

O título do quadro é Poachers: View in the Dargle. Refere-se a um vale próximo de Dublin e aos praticantes do poaching, isto é, a caça furtiva, que pode ser tanto o ato de disparar contra, capturar com armadilhas ou extrair animais silvestres (incluso peixes – enguias, no quadro de Butts) de um local onde a prática é proibida, ou de propriedades particulares. Na Inglaterra, a fiscalização especializada foi instituída no século XVII por meio dos “guarda-caças” (gamekeepers), sendo um deles o que dispara a arma em Poachers: View in the Dargle. O poaching tornou-se então uma atividade cada vez mais complexa, com formações de bandos atentos aos guarda-caças e às suas artimanhas.


Na França, a prática leva o nome de braconnage. Em Retour de chasse (c.1861), de Évariste-Vital Luminais (acima), dois braconniers parecem tanto estar se escondendo da fiscalização quanto preparando-se em sua atividade. Um deles está em pé, espreitando por entre a vegetação, enquanto o outro, mais próximo da lebre inerte, com a espingarda ao solo, tem os ouvidos extremamente atentos.


Luminais usa de um artifício semelhante em um quadro que não representa uma braconnage e sim Gauleses batedores, no qual uma parte da pose e a face de um gaulês equivalem à do braconnier anterior.

Em geral, até o século XX, a caça furtiva foi mais ou menos aceitável quando o motivo era a subsistência. Jean Valjean, o herói de Os miseráveis, é representado no início do romance como um braconnier, um caçador furtivo, logo após tentar, sem sucesso, roubar um pedaço de pão para dar aos sobrinhos famintos. Nas palavras de Victor Hugo: “Contra os caçadores furtivos há um preconceito, até certo ponto legítimo: que o caçador furtivo e o contrabandista não distam um passo do salteador. O caçador furtivo vive nas matas; o contrabandista nas montanhas ou no mar. As cidades produzem homens ferozes porque os corrompem. A montanha, o mar e a mata, criam homens selvagens.” (tradução de José Maria Machado, Ed. Hemus, 2002, p. 39)


Luminais compôs outro Retour de chasse (Museu de Poitiers) que Alexis Mauflastre copiou (imagem acima). O quadro tem pontos em comum com o nosso Caipiras, os pés descalços, por exemplo, talvez para enfatizar a necessidade dos caçadores e, ao mesmo tempo, tal ideia de selvageria que lhes seria inata. Representa, por outro lado, a caça consumada, em cenário aberto com o cão farejador e simpático, todos rumando para a casa, embora com alguma apreensão.

John Mulvany produziu quadros que se aproximam mais ao de Almeida Júnior. Em On the alert (1876) até mesmo o gesto de contenção do tiro é semelhante, no entanto com uma inversão: é o jovem que parece deter o mais velho. Em Scouts of the Yellowstone (c.1881), embora possa não se tratar de uma caça, o clima tenso por sua vez é similar.



Briton Rivière é um dos pintores que mais se dedicaram ao tema de formas diversas. Nascido em Londres, Rivière pintou Poachers (1876), Companheiros no infortúnio (1883) e Falcoaria (1900), abaixo na sequência. Nesses quadros, não é tanto a ação da caça o mais importante, mas sim o que está à margem dessa ação.




Delacroix também empregou o tema em diferentes variações, dentre as quais no admirável Caça ao leão no Marrocos, de 1854, pertencente ao Museu de São Petersburgo. Sua narrativa é similar à do quadro brasileiro, com diferenças substanciais. Além de a arma estar nas mãos do mais velho, não do mais novo, vemos uma composição mais clara e descerrada, a inversão do ponto de vista (agora estamos às costas dos caçadores, não à frente deles) e principalmente a exibição da presa ali no gesto típico dos gatinhos, de se limpar com a própria língua, despercebida do que lhe sucederá em breve. Outros elementos como um cavalo (ele próprio aparentando estar assustado com a brutalidade dos homens) e o punhal longo jazendo brilhante e em repouso avivam este quadro que, a seu modo, capta algo do momento decisivo de que Cartier Bresson fala na fotografia.


Uma escultura, Índio Caçador, de John Quincy Adams Ward, apresenta a mesma situação de Caipiras, mas os protagonistas são outros: no lugar do homem mais velho, o nativo da América; no lugar do mais moço, o cão. É o mesmo tema do domínio da força pela razão, evidentemente mais acentuado no bronze do que no quadro de Almeida Júnior. O Índio Caçador também conheceu grande prestígio em seu tempo. Disso resultou a instalação de um bronze maior no Central Park de Nova York, já nos anos de 1890. A grande escultura, porém, mostra um índio um pouco menos amistoso do que o do pequeno bronze.




Seriam tantos os artistas brilhantes nessa seara: Courbet, de cuja notável produção sobre a caça destaca-se Os caçadores na neve (1864), também representando dois comparsas; Manet e seu Pertuiset, caçador de leões (1881), da coleção do MASP; e até mesmo Jean Renoir com A regra do jogo (1939), em que o braconnier Marcel e sobretudo as sequências de caça são essenciais ao filme.




O que dizer da ilustração científica de Heinrich Harder, dos anos de 1920, de dois homens primitivos se acercando a um gliptodonte?


Voltemos à produção de Almeida Júnior (recomendo, a propósito, a tese de doutorado de Fernanda Mendonça Pitta, Um povo pacato e bucólico: costume, história e imaginário na pintura de Almeida Júnior), pois se ele não pintou mais quadros de caçadores, além do Caipiras negaceando em dimensões menores, fez diversos outros nos quais instrumentos de trabalho ou armas brancas são verdadeiros protagonistas. Jorge Coli apontou em sua tese de livre docência e no livro Como estudar a arte brasileira do século XIX?, bem como no artigo “A violência e o caipira”, baseando-se nos estudos de Maria Sylvia Carvalho Franco, a presença de uma “falsa paz” tão reconfortante quanto enganadora na arte de Almeida Júnior (mas poderíamos dizer na sociedade brasileira). “Os motivos são os mais fúteis”, diz Coli sobre os rompantes, “e os efeitos da violência atingem os mais próximos, vizinhos, família.”


Encerro com o quadro acima de Almeida Júnior, Pescando (1893), talvez o mais exemplar em se tratando de um legado que os mais velhos possam deixar para os mais novos.

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