Os caminhos do lobisomem



A história toda começa no curso de cinema e vídeo da ECA/USP. Eram três amigos: Marco Dutra, Juliana Rojas e Caetano Gotardo. Queriam fazer filmes e esbarravam na dificuldade em conseguir recursos, esse choramingo que todos já ouvimos centenas de vezes. Não criaram uma produtora, mas um coletivo (em 2006 isso tava super na moda entre a juventude descolada). E o compromisso era que cada um ajudaria na produção do filme do amiguinho. Assim nasceu a Filmes do Caixote.

Juliana Rojas e Marco Dutra

Caetano Gotardo

Houve outros integrantes, foram produzidos alguns curtas. Pra quem quer saber mais, há essa matéria bem informativa. Quero me ater aos longas realizados por esses três diretores. Mesmo não sendo uma filmografia extensa, creio que estamos diante de trabalhos sofisticados e altamente autorais, com coerência e forte diálogo entre si.

O primeiro filme surgiu em 2011, dirigido em parceria por Juliana Rojas e Marco Dutra, com montagem de Gotardo. Em Trabalhar Cansa, um casal de classe média passa por crise: ele perde o emprego numa grande empresa, ela abre um mercadinho que só dá pepino. Algo de maligno parece habitar as paredes do comércio.



Há um mal-estar entranhado em cada fotograma, uma inquietação que incomoda e desconcerta. E a materialização desse sentimento se dá pelo rigor e secura dos enquadramentos e da atuação do elenco. Para um público acostumado aos excessos das telenovelas, parece um filme alienígena (ouvi de alguns amigos “os atores são péssimos, parecem mortos!”). E há uma impureza no que diz respeito ao gênero da produção: ora é uma comédia das mais mordazes, ora critica social e política, há momentos de drama familiar e outros de suspense sobrenatural. Mas tudo funcionando muito organicamente. A estranheza e o horror podem vir tanto de fonte monstruosa quanto das tensões de classe ou crises familiares.


Dois anos depois, em 2013, Caetano Galindo lançou seu O Que Se Move, com montagem de Rojas, e Dutra colaborando na letra das canções. Em três histórias independentes entre si, é traçado um painel de sofrimento e dor, tendo a figura da mãe como centro. Eu acho o mais bonito e poético do Caixote. Há um refinado senso de composição, utilização notável de planos de longa duração (como diz um amigo, Nando, “planos que precisam ser preenchidos pelo olhar do outro”),
mise en scène elegante que somado a qualidade do elenco – e uma certa musicalidade dos diálogos – resulta num filme muito especial. Quanto à já mencionada música, explico: ao final de cada um dos segmentos, uma mãe canta um lamento ao filho. Forma lírica de expressar profunda dor, nos faz pensar num certo espírito demyniano.


E voltando ao elenco, algo que me parece fundamental pra entender esses filmes: não estamos diante de interpretações naturalistas. Nem em Trabalhar Cansa, muito menos aqui. As atuações são auteras, desdramatizadas. Me faz pensar nas atuações dos filmes de Eugène Green, que diz se basear no teatro barroco francês (e eu que não entendo nada de teatro barroco francês, acredito nele). Cria-se um imediato estranhamento, um desconforto que, somado a outros elementos, cria a atmosfera tão particular dessas produções.




Pula pra 2014. Dois lançamentos.

Juliana Rojas havia dirigido em 2013, por encomenda da TV Cultura, um simpático média de 53 minutos intitulado A Ópera do Cemitério. Um ano depois ela lançou nos cinemas uma versão ampliada deste trabalho, agora com 85 minutos, com o título Sinfonia da Necrópole. Um jovem atrapalhado e muito medroso começa a trabalhar como aprendiz de coveiro. É então que ele se apaixona por sua nova chefe.


Aqui estamos diante de um explícito musical, todas escritas por Marco Dutra. Mais perto de um Jacques Demy que de um Busby Berkeley. O tom de comédia musical, cheia de gags visuais, se chocam com aparições de mortos vivos e com questões de especulação imobiliária transferidas para o microcosmos funerário. A mais leve e saborosa empreitada da Caixote, recomendo fortemente, assim como a leitura das análises de Inácio AraújoMarcelo Miranda e da Andréa Ormond.

Neste mesmo 2014 Marco Dutra lança Quando Eu Era Vivo, baseado no livro de Lourenço Mutarelli, montado novamente por Rojas. O elenco agora conta com Antônio Fagundes e Sandy, o que garantiu boa publicidade. Na história, um rapaz recém divorciado volta ao apartamento do pai. Vasculhando em velharias, redescobre pertences de sua falecida mãe, uma mulher misteriosa envolvida com ocultismo. O clima vai ficando cada vez mais sufocante, assim como a sanidade dos moradores cada vez mais debilitada.


Dutra sabe bem conduzir a narrativa numa curva ascendente de mistério e horror, toda feita em interiores. Para além de sugestionar, há aqui de fato uma presença maligna, que se manifesta enquanto tal. (lá em Trabalhar Cansa a coisa ficava na véspera, não tinha os finalmentes). Não há momentos musicais aqui, embora haja uma canção entoada pelo casal no ritual final. O resultado é sombrio, poético e hipnótico.




Dois anos depois, em 2016, Dutra retorna em nível elevadíssimo com o thriller O Silêncio do Céu, co-roteirizado por Gotardo. Filmado no Uruguai, começa com a personagem de Carolina Dieckmann sendo estuprada por dois homens em sua própria casa. Ela decide esconder a violência do marido, um fóbico crônico, que também guarda segredos da esposa. (este filme está disponível no Netflix, recomendo fortemente a todos).


Com uma estrutura de filme de vingança, a produção segue um caminho muito mais complexo e difuso do que se esperaria de um suspense tradicional. Ecos de Brian DePalma pipocam em diversos momentos. Atuações mais realistas o fazem mais acessível. O resultado é amargo e desesperançado, ainda que belo.



Chegamos enfim a 2017, onde As Boas Maneiras percorreu diversos festivais, estreando comercialmente em 2018. Na direção a dobradinha Dutra-Rojas, e na montagem Gotardo. O filme é um clássico 2 em 1: começa com um suspense psicológico cuidadosamente construído entre duas mulheres, a patroa grávida e a empregada negra – com todos os ecos classistas que isso implica. Então ele acaba e outro começa: a criança já crescida e sua relação com o mundo externo.


O resultado é um pouco desigual, já que a primeira parte é bem superior. Mas a história é interessante e o roteiro bem amarrado o bastante para manter o público engajado. A Marjorie Estiano brilha com um sotaque goiano que contrasta gritantemente com a portuguesa Isabél Zuaa, muito calada e com um estilo de atuação mais próximo do Trabalhar Cansa. A composição visual é inventiva e impecável, e as músicas fundamentais para a narrativa. Há inclusive canções que surgem sem aviso prévio na boca de alguns personagens, melancólicas e cheias de ternura. Algo entre O Que Se Move e Sinfonia da Necrópole. Não estamos aqui em terreno realista. O mágico e o sobrenatural tem espaço, o que já estava indicado por um dvd de Georges Méliès ao lado da cama da personagem de Estiano, e se manifesta em sua grandeza com a São Paulo luminosa composta em grandes planos aéreos.






As boas maneiras, assim como todos os outros filmes produzidos pelo trio, é um cinema de riscos, não acomodado, criativo e profundamente apaixonado pelos seus meios. É sem dúvida a grande força do cinema paulista, que, juntamente com o pernambucano de Kleber Mendonça Filho e o carioca Fellipe Barbosa forma a promissora potência do cinema brasileiro.

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