Colher a rosa

"Colher a rosa" é metáfora que vem dos tempos do amor cortês, desde o século XIII. Esse modo poético de significar a conquista voluptuosa masculina prolongou-se até o renascimento.


Paolo Fiammingo, como os italianos o chamavam (ou seja, Paulo Flamengo), ou Pawels Francken, um pintor que veio de Antuérpia para a Itália, tornando-se colaborador de Tintoretto em Veneza. Encarregava-se de executar paisagens que serviam como fundo para obras do mestre - em San Rocco, por exemplo, ou no palácio ducal.

Fiammingo foi um pintor erótico. Seus nus femininos, em cenas alegóricas ou mitológicas que possuem algo de onírico, mostram carnes opulentas e suaves, cobertas por epiderme macia.



 Acima, o Amor Letheo (1585 circa - Kunsthistorisches Museum Viena, Gemäldegalerie). Letheo quer dizer do rio Letes, cujas águas provocam o esquecimento. Nele, Cupido apaga sua tocha. O pretexto é moralizador: é melhor esquecer as pulsões do desejo e levar uma vida austera. A imagem oferece o oposto, com corpos femininos que se revelam generosamente.

No último número da Revue de l'Art, Elinor Myrna Kelif estuda o "colher a rosa" como metáfora visual que Fiammingo encena num quadro. Tela que talvez seja sua obra-prima. 


A pintura está no mesmo museu que o precedente e foi realizado em data similar. Ela pertence a uma série de telas situando o amor nas diversas idades: do ferro, do bronze e, este, do ouro, quando os desejos se tornam recíprocos. Seu título é Recíproco amor ou Amor na idade do ouro.
No casal da esquerda, a troca de olhares é intensa, a perna da mulher se sobrepõe à coxa do homem (gesto que Leo Steinberg chamou de the slung leg), o que significava iminência do ato sexual.
No casal da direita, o ato foi consumado. O homem segura a rosa diante do sexo da mulher, numa ostensiva metáfora, e esta coroa seu triunfo também com rosas, além pousar a mão esquerda entre suas pernas. À extrema direita, a máscara de Jocus, irmão de Cupido, que pode significar tanto a loucura amorosa quanto o prazer alegre que o amor traz.
Ao fundo, um jardim de delícias, com jovens nuas fazendo uma roda diante de um casal que as contempla.

Elinor Myrna Kelif não assinala, mas essas obras de Fiammingo tiveram sucesso e foram traduzidas em gravura:


O texto escrito sob a imagem pode ser traduzido mais ou menos assim: "Do recíproco Amor, que nasce e deriva / Da ocasião inocente de virtuoso afeto / Nasce para as almas sinceras dileto alimento / Que proporciona alegria ao homem e o trai com sofrimentos."


Ao sublinhar a presença da rosa metafórica na cultura veneziana do renascimento, a autora busca outro quadro: Venus, Marte e Cupido, pintado por Paris Bordone por voltas de 1560. Bordone, primeiro discípulo, depois rival de Ticiano, teve grande sucesso na Europa de seu tempo. Bem menos explícita que a tela de Fiammingo, a de Bordone cria situações poéticas, com um Cupido que despeja rosas de uma cesta e um gênio alado que coroa o casal.
O gesto delicado do contato entre as mãos dos namorados leva Elinor Myara Kelif a associá-lo aos gestos altamente significativos e obscenos que se descobrem no A mulher entre duas idades, do Museu de Rennes (anônimo, Escola de Fontainebleau, segunda metade do século XVI).

Sobre este quadro, seus enigmas e mistérios, há um excelente e aprofundado estudo, em livro pela editora do IFCH/UNICAMP, escrito por Jacques Bonnet.




Comentários