Há séculos o homem representou, fosse nas artes ou na
literatura, a decapitação. Nos textos bíblicos, grandes castradoras tiveram
suas histórias narradas, Salomé e Judite, por exemplo. Uma, a pedido da mãe, encomenda
ao Tetrarca a cabeça de João Batista, de forma muito específica: que lhe fosse
servida numa baixela de prata. Judite, por outro lado, salva o povo judeu ao
decapitar, como uma fêmea louva-deus que devora o macho após o coito, Holofernes. Ambas foram incansavelmente retratadas ao longo da história da
arte. No renascimento, principalmente, artistas contaram as histórias dessas
trágicas mortes, enfatizando o ato guilhonesco com gritos silenciosos, finas
linhas de sangue e o olhar implacável das magníficas donzelas que recebiam, em
mãos, seus prêmios masculinos.
O cinema e a literatura igualmente não se furtaram do tema.
Oscar Wilde escreve sua peça Salomé
em 1891. A obra foi adaptada posteriormente para os palcos dos teatros de
ópera, em 1905, pelas mãos do alemão Richard Strauss. Ainda há outros, Jules
Laforgue, Stéphane Mallarmé, Gustave Flaubert e Jules Massenet, os quais viram,
na história dessas grandes mulheres da Judeia - Salomé e Herodíade - um assunto profícuo e
inquietante.
O século XIX mostra então um fetiche pelo tema da mulher fatal e a decapitação. Gustave Moreau ocupou seu ateliê com as mais tilintantes Salomés e
Gustav-Adolf Mossa, no começo de 1900, inseriu em suas donzelas sanguinárias uma
ironia ambígua e cruel. Sua Salomé, le
goût du sang (1904) flerta com o mundo infantil e a exploração do macabro. Uma de
suas versões de Judite guarda na carteira, tal qual moedinha de troca, a cabeça
de Holofernes, enquanto o corpo degolado é arrastado, ao fundo, pelos carrascos.
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Gustav-Adolf Mossa. Salomé, le goût du sang, 1904 |
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Gustav-Adolf Mossa. Judith, 1906 |
Salomé, na peça de Wilde, encarna a visão do desejo profano
pela cabeça recém adquirida de seu querido Iokanaan. O homem que ousara refutar
seu desejo, o beijo, e que agora jaz imóvel e silente por entre os braços da
jovem princesa da Judeia. Em 2008, David McVicar dirigiu a ópera homônima de
Strauss, na Royal Opera House de Londres. De veia cinematográfica, a montagem
mescla a crueldade alucinada de Salomé, com os mais deliciosos jogos de
realismo visceral.
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Nadja Michael como Salomé (direção: David McVicar) |
No cinema, a decapitação aparece das formas mais variadas. A
ficção científica entrega o tema da sobrevida da cabeça degolada. A reanimação
em laboratórios, o gosto por dobrar os caminhos da morte corpórea, na busca pela
vida eterna. The brain that wouldn’t die
(1962) e Re-Animator (1985) são alguns
dos incontáveis filmes que abordam a temática da vida das cabeças privadas de
um receptáculo corporal.
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The brain that wouldn't die (1962), de Joseph Green |
Mas o que torna a cabeça um objeto de tamanho fascínio?
Em 2004, Antonio Dominguez Leiva explanou acerca do culto
dos crânios, ao longo da história, em seu belíssimo livro “Décapitations. Du culte des crânes au cinema gore”, resultado de sua tese de doutorado. Nele, o autor propõe uma "arqueologia do suplício e do macabro", abordando desde os registros de degolações no mundo antigo e medieval, ao período
do Terror, com a concepção e recepção da guilhotina. Método eficaz de pena
criminal e política, a guilhotina e suas vítimas serviram de tema inclusive para
diversas obras na história da arte, como aquelas de Géricault, ou A musa de André Chénier, escultura que
Denys Puech realiza em 1888. A tensão afetiva pela cabeça é evidente na obra de
Puech. A jovem alegoria da poesia, musa de Chénier, que havia sido vítima do
instrumento fatal da Revolução Francesa em 1794, é vista nua, enlaçando a
cabeça do jovem poeta num delicado beijo. A escultura tange o tema da
relação feminina com a cabeça degolada. Aqui, mais afetuosa que sombria.
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Denys Puech. La muse d'André Chénier, 1888 |
Nos capítulos seguintes, Leiva disserta sobre o Grand Guignol, famoso teatro do horror
que teve seu fim no pós-guerra, e também sobre os comic books. A monografia atravessa a presença da decapitação no
cinema de horror, elencando dentre os mais diversos filmes, um horror de baixíssimo
orçamento, realizado na Alemanha Oriental, por Jörg Buttgereit: NEKRomantik (1987).
O filme revela o gosto, mórbido e decadente de um jovem
casal, pelo prazer do tocar a carne pútrida. Sim, um filme sobre necrofilia. Robert
(Bernd Daktari Lorenz) trabalha com a retirada de corpos na estrada, frutos
trágicos de acidentes automobilísticos. Ele leva uma das vítimas para sua
residência. Um minúsculo apartamento que divide com a companheira, Betty
(Beatrice Manowski). O corpo, de um marrom azulado e descarnado, cujas costelas
e protuberâncias ósseas fazem ocultar qualquer vestígio de identidade que
aquele humano tivera em vida, se torna o brinquedo principal nos jogos sexuais
do casal. Mas aos poucos Robert se dá conta de que Betty parece ter mais prazer
com seu novo amigo, que de fato com o corpo vivo, quente e pulsante do namorado.
Assim, é descartado pela amante, que abandona a residência, levando o novo
companheiro nas costas.
Buttgereit realizou, anos mais tarde, uma sequência para o
filme, estrelado pela atriz pornô e cantora lírica Monika M. (responsável
também por interpreta a música emblema da produção). Enquanto o primeiro filme tinha
como protagonista um corpo pútrido, embora intacto em sua totalidade, a segunda
produção, NEKRomantik 2 (1991),
revela um gosto por aquilo que há de mais singular entre os homens, a cabeça.
Monika, apaixonada pelo amante corrompido, não enxerga nele o anonimato. Ela
nutre uma afeição romântica por aquele que outrora fora (sua identidade,
deixarei para os curiosos descobrirem). Embora tenha em si a alma de uma
necrófila, amante dos mais cruéis massacres animais exibidos pelos canais
televisivos de desbravamento da natureza, Monika não consegue conter seu nojo.
Tenta, em vão, copular com o corpo do falecido.
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O retrato de família em NEKRomantik 2 |
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NEKRomantik 2, de Jörg Buttgereit |
E como resolver o problema, se o que ela ama é mais o homem
que a sua condição? Monika decide, enfim, guardar somente aquilo que apetece os
seus instintos, amorosos e sexuais, o pênis e a cabeça.
O tópico da crânio-necrofilia, termo cunhado pela
pesquisadora Patricia MacCormack, encontra o seu caminho no cinema de horror.
Trata-se de um tema explorado à exaustão, esse do desejo pelo corpo morto. As
mulheres são, em suma, as protagonistas desses massacres. Que com sua
jovialidade, lascívia e fatalismo, corrompem até o mais puro dos homens. E se
não conseguirem, é fácil, basta fazer como Salomé, e ordenar-lhes a cabeça.
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