A cena da dança: Yankee Doodle Dandy


Sempre pensei em ter um blog para escrever sobre cenas específicas do cinema. Não qualquer cena. Quando sonhava, o blog teria um nome como A cena da dança, e a cada post poderia falar sobre um momento específico da infinita indústria dos musicais, especialmente em Hollywood. Ora, amável leitor, você deve ter percebido que o estilo do início deste texto é profundamente diverso daqueles outros que publiquei até então.



Devo fazer algumas poucas ressalvas sobre isso. Do sonho de A cena da dança migrei para uma ideia mensal. Não vou parar de escrever como me acostumei no blog, mas farei, uma vez por mês, tal sessão com os números musicais. Problema número 1) como afastar a paixão pelos filmes e ser objetivo na descrição e análise? 2) Existirá critério para inserir uma cena específica? Ora, imediatamente tenho que negar as duas perguntas. A relação que proponho nestas linhas é mais pessoal, é de coração, vísceras, como diria Gene Kelly, “And I know if I can make you smile by jumping over a couple of couches or running through a rainstorm, then I'll be very glad to be a song and dance man.” 
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Assim, me afasto de uma linguagem mais distante, antes ela será mais pessoal e emotiva. A calibragem nos adjetivos, o gosto individual entre um ou outro dançarino será, sem delongas, exibido. Deste modo, não hesite em resmungar quando tocar negativamente naquilo que o impulsiona emotivamente, eu faria o mesmo!

Quem poderia falar o que quer que fosse negativo do sublime, leve e ágil Astaire ou do muscular, gravitacional e de sorriso carismático e safado Gene Kelly? O rosto linear, com lábios divinamente desenhados, seu penteado quase sempre art-déco de uma dançarina poderosa como Ruby Keller ou as largas pernas maravilhosas e uma técnica fora do comum no rodopio de Eleanor Powell? Fique à vontade.

Para inaugurar essa série de textos e não poderia ser diferente, não foi utilizado nenhum critério lógico. Primeiro fechei os olhos e busquei a primeira cena que me apareceu. Interessante, batalhei um instante para tirá-la da cabeça, não tinha vontade de começar com o que vem a seguir. Seria melhor, para o meu leitor, exprimir um pouco sobre o casal Ruby Keller e Dick Powell, que fizeram tantas cenas juntos ou mesmo os mais conhecidos, como Fred Astaire e Ginger Rogers. Mas teremos muitos encontros pela frente e respeito a imagem de James Cagney em Yankee Doodle Dandy.


O filme, de 1942 foi dirigido pelo Michael Curtiz, ele mesmo de Casablanca e Mildred Pierce, esse último deu o oscar de melhor atriz para Joan Crawford. Mas isso desvia o nosso assunto atual.


Yankee Doodle Dandy se insere em um misto interessante. É um biopic de uma das figuras mais importantes e louváveis no mundo dos musicais, especialmente na Broadway, George M. Cohan. E ao mesmo tempo é filme de sua época, se insere nas produções cujo assunto primeiro é a força inexorável diante dos horrores da guerra. O papel de Cohan no filme nesse sentido não é dúbio como é a relação amorosa delicada que o roteiro apazigua. A história se concentra como um feedback. Quando a guerra estoura Cohan se sente imprestável, procura se alistar como pode. Seu tamanho e magreza o impedem.
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Na cena final ele acaba de ser condecorado pelos serviços prestados com suas canções patrióticas e ao sair do lugar encontra muitos soldados voltando para casa. Todos, de modo disciplinar, cantam como marcham as palavras de Over there como um hino de guerra. É apoteótico: cada qual luta com as armas que possui. Com os olhos marejados vai para o meio dos soldados e canta de braços cruzados com eles. Enfim sua vida valeu a pena. “Over there é uma arma poderosa como qualquer canhão, qualquer encouraçado que tivemos na primeira grande guerra. Hoje todos somos soldados, estamos todos no front”, é o que ele escuta antes de receber a medalha.
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Vejamos o número musical que nomeia o filme:




Este número é muito importante. Claro, em 1942 o mundo já havia conhecido Busby Berkeley, sua câmera em 90 graus e as múltiplas imagens em caleidoscópio, marca única. Esse sistema parece cansar rapidamente, o mundo intimista do cabaré e do teatro que o olho consegue apreender volta com força, mesmo Berkeley a partir de 1938 se insere nessa linha.
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Contudo, Curtiz imprime uma marca que une alguns fatores. O olho da câmera e o olho daquilo que seria o do espectador é fundido magicamente, pelo cinema. Temos impressão que compramos o ingresso e estamos sentados junto com alguém no primeiro balcão, na sequência estamos na primeira fila e logo depois entramos nas particularidades que só o olho do cinema poderia ver e não eu, lá mesmo naquela primeira fila. A câmera segue Cagney de um lado para outro. Vivemos naquele instante o espaço do teatro. Por vezes, ele aparece como quem está manipulado feito marionete, dança controlado.



Cagney não foi a primeira opção para interpretar Cohan. A ideia era Fred Astaire que não quis o papel. Seu estilo, segundo ele próprio, era muito diverso de Cohan. Talvez seja verdade. O papel meio caricato e mesmo duro de Cagney dançando são bem diferentes da leveza flutuante do famoso dançarino. A ator em questão certamente passou para a história do cinema como o gangster por excelência, seus papeis se multiplicaram no tema, mas era um bom dançarino e tinha feito o maravilhoso Footlight parade, de Llyod Bacon em 1933, no auge dos musicais.
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Yankee Doodle Dandy é uma variação de Cohan de uma canção militar norte-americana, data da guerra civil e é extremamente difundida. Na própria história do cinema também. Lembro apenas de um número que não vou comentar com o casal Judy Garland e Mickey Rooney no filme de Busby Berkeley, com cenas dirigidas também pelo Minnelli, nos famosos “Backyard Musical” – explico em outro post. Babes on Broadway, 1942. Mas podemos comparar o número de ensaio em um teatro abandonado no qual a imaginação ganha a realidade.
 



Até a próxima.

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