Já ouviu falar de Kahlil Joseph antes?
Uma mistura entre virtuosismo corporal e gestos mecânicos. Um balé às avessas, estranho ao olhar e ao mesmo tempo hipnotizante. Storyboard P, é o nome artístico do bailarino. O dançarino, sempre um passo adiante, atrai a câmera que o segue como imã. A câmera torna-se um observador curioso. A lente tenta acompanhar toda plasticidade criada por esse corpo magro e flexível. É inevitável não segui-lo. A coreografia é tão extraordinária que os moradores do bairro, colocam-se imobilizados, enfileirados num muro e não reagem diante da presença do sublime
Dois exemplares de sua obra são exibidos até a segunda quinzena de outubro/2018 na exposição Histórias afro-atlânticas do Masp. Para encontrar a sala de videos da mostra o visitante precisará ser curioso. É necessário caminhar pelo piso do restaurante do Masp e se dirigir ao corredor do lado oposto e, em frente a biblioteca encontrará a sala de exibição. Na entrada há uma cortina que separa o ambiente externo do interno. O interior é todo revestido por paredes pretas. Dois bancos posicionados perpendicularmente aos telões convidam timidamente o visitante a sentar. A luz escassa surge apenas das imagens refletidas nas duas telas. A ambientação favorece a concentração exclusiva e o observador tem uma experiência que se aproxima das salas de cinema.
Os curtas-metragens são exibidos em sequência, The Model: chapter 2 – Oshun and the Dream (2010) e Flying Lotus: Until the Quiet Comes (2013). Essa postagem se dedicará ao segundo trabalho.
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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Antes mesmo do título, a imagem exibida é apenas água. A câmera submersa, direcionada para a superfície, descreve uma dinâmica de bolhas e luzes acompanhada por tons esverdeados. A cena sofre um rápido corte e fragmentos de um corpo submerso surgem como uma aparição. O casaco de um vermelho poderoso parece antecipar algo que será revelado adiante.
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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Na sequência o tom pastel e ocre contaminam a tela. O dia ensolarado ilumina uma grande piscina, funda e vazia, habitada apenas por uma criança. O garoto ergue seu braço e a pequena mão imita uma arma de fogo. Completando a fantasia atira em direção a borda da piscina. A bala, que antes não passava de uma brincadeira, perfura a parede ricocheteia e o atinge no peito.

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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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As cenas são de uma plasticidade vigorosa. O piso da piscina é tingido por um vermelho rubro. O sangue escorre como a nascente de um rio, formando um grosso feixe, como um tapete que serve de caminho para que o observador prossiga para a próxima cena .
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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A narrativa segue com outros personagens. Revela momentos anteriores ao tiro. Crianças brincando, correndo, vivendo. Dois meninos correm em campo aberto. Em destaque o céu de coloração extraordinária que alerta o observador: lazer e diversão em bairros da periferia de Los Angeles não terminam em happy endings.
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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Na cena seguinte o menino baleado é substituído por um homem. O rapaz de corpo esbelto e longilíneo, morto, está deitado sobre o cimento bruto, em posição desconfortável. Imobilidade não é uma opção. Como um truque de mágica, ele se levanta.
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Flying Lotus. Until the Quiet Comes (2013), direção de Kahlil Joseph.
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Seu corpo perfurado e com a roupa manchada de sangue, inicia uma dança sincronizada com as batidas da música. Seus movimentos apresentam contrastes. São leves, bem marcados e fluidos, mas também pesados, articulações contorcidas, músculos rígidos, um deslocamento desconfortável. A roupa se converte em barreira, mesmo a camiseta de regata, tecido fino e desgastado, parece atrapalhar a erupção de movimentos que emergem das formas corporais.
Uma mistura entre virtuosismo corporal e gestos mecânicos. Um balé às avessas, estranho ao olhar e ao mesmo tempo hipnotizante. Storyboard P, é o nome artístico do bailarino. O dançarino, sempre um passo adiante, atrai a câmera que o segue como imã. A câmera torna-se um observador curioso. A lente tenta acompanhar toda plasticidade criada por esse corpo magro e flexível. É inevitável não segui-lo. A coreografia é tão extraordinária que os moradores do bairro, colocam-se imobilizados, enfileirados num muro e não reagem diante da presença do sublime
No final do percurso Storyboard é sugado pela janela de um carro e deixa a cena como em um conto de fadas. Um artista que não se despede do palco e do seu público ao finalizar o espetáculo.
O vídeo foi feito para o grupo de música eletrônica Flying Lotus e em 2013 foi premiado no festival de Sundance. O jovem diretor Kahlil Joseph, vem de uma família de artistas. O pai foi um entusiasta da produção de artistas negros e o irmão foi pintor que infelizmente teve sua carreira interrompida precocemente ao falecer em 2015. Embora a influência familiar tenha papel na formação do artista, Joseph pertence a uma geração na qual um canal de televisão muito popular durante as décadas de 1980-90 era o entretenimento preferido da juventude americana. A MTV apresentava 24 horas de vídeos de música. Foi a escola de uma geração de diretores de cinema. Produzir videoclipes era a porta de entrada. No entanto, o canal perde sua popularidade com o surgimento do youtube, mas nem por isso as produções, feitas com o objetivo de promover e apresentar os trabalhos da cultura Pop, deixaram de existir. As obras tornaram-se mais elaboradas e transformaram-se em espaço de experimentação de muitos diretores. Surgiram discursos e formas fílmicas inovadoras, narrativas de autoria que trouxeram traços e marcas relevantes, dignas de fruição estética.
Não por acaso, Lemonade (2016), álbum de Beyoncé, teve a direção geral de Kahlil Joseph. Os prólogos desses vídeos são repletos de visualidade plástica, acompanhados de um texto intimista narrado pela cantora.
Além da busca pela excelência (alguns críticos usam o termo black excellence) essas produções transformaram o mote da violência, comumente utilizado em letras e imagens no hip hop para denunciar as injustiças sofridas pela população negra. Aparentemente as produções recentes não abandonaram a militância, mas encontraram um eye emotional, tão tocante quanto muitas das cenas violentas antes exploradas com frequência.
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Michael Kiwanuka. Black Man In A White World (2016), direção de Hiro Murai.
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O grande protagonista dessas narrativas é o corpo masculino. No entanto, não é mais um corpo que ameaça, mas um corpo que dança. Dois vídeos realizados para canções do britânico Michael Kiwanuka: Black Man In A White World, dirigido pelo diretor japonês Hiro Murai (o mesmo diretor do clipe de Childish Gambino – This is America) e Cold Little Heart, dirigido por David M. Helman, são protagonizados por jovens negros dançando.
Assim como em Until the Quiet Comes, nos dois vídeos de Kiwanuka, a dor masculina é representada pelo movimento corporal. A perda, a violência, e a perseguição pelo outro, é enfrentada ou apenas suportada pela dança. Corpos negros traduzem o indizível. Pelo movimento misturam-se dor, liberdade, defesas e confrontos. A dança poderosa é capaz de sublimar a tragédia, faz o garoto de Black Man In A White World levitar e fantasticamente se afastar da violência iminente.
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Um homem negro tão virtuoso que governa sobrenatural. Em Lift me up do rapper Vince Staples, a imagem explorada é a de um corpo leve, capaz de façanhas fantásticas. Dirigido por David M. Helman, o vídeo é protagonizado pelo cantor e incomoda o olhar ao elaborar posições corporais que desobedecem qualquer regra gravitacional. Ao inclinar-se para frente o artista cria um ângulo entre o solo e seu corpo que inflige nosso olhar, confere estranheza e admiração, um estimulo visual de caráter irracional.

Vince Staples. Lift Me Up (2016), direção de David M. Helman |
Em outro momento o corpo masculino levita. O conjunto de membros inferiores, tronco e cabeça desenham um arco próximo do solo, reforça um tom fantasmagórico e até recorda as cenas de possessões demoníacas do cinema de horror.

Vince Staples. Lift Me Up (2016), direção de David M. Helman |
Ângulos e enquadramentos desorientam o olhar e questionam as limitações corporais. Ao elevar o corpo a cena remete as imagens da ressurreição de cristo, tão exploradas pelos pintores renascentistas. A sacralização do corpo negro torna-se evidente:
Aprendi a andar; desde então corro. Aprendi a voar; desde então não quero que me empurrem para mudar de lugar.
Agora sou leve, agora voo; agora me vejo no alto, acima de mim, agora um Deus dança em mim.*
*Friedrich Nietzsche em Assim Falava Zaratustra: Um livro para todos e para ninguém, 1883-85.
Quanta beleza nesta postagem. Agora vou conferir todos os vídeos dos quais você falou. Grande trabalho!
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