Os grandes falsários são fantásticos. São hábeis, espertos, e dão rasteira nas autoridades. Mas eles precisam da ajuda de um grande cúmplice.
O falsário mais famoso do século XX foi Han van Meegeren, que pintou, em 1937, A ceia de Emaus acima, e convenceu o professor Bredius, maior especialista em Vermeer, assim como convenceu todo mundo, de que era um autêntico Vermeer.
Como foi possível fazer passar esse quadro - que, olhando hoje, nem meu cachorro Maroto tomaria por um Vermeer - por um verdadeiro? É que Bredius e os especialistas esperavam encontrar, um dia, uma obra de Vermeer 1) com tema religioso; 2) com aspectos caravaggescos, confirmando suas teorias sobre a viagem do pintor à Itália quando jovem. Além disso o quadro tinha um quê "art déco": o falsário vê com os olhos do seu tempo e o público também. O estilo "art déco" moldava então os olhares.
Como foi possível fazer passar esse quadro - que, olhando hoje, nem meu cachorro Maroto tomaria por um Vermeer - por um verdadeiro? É que Bredius e os especialistas esperavam encontrar, um dia, uma obra de Vermeer 1) com tema religioso; 2) com aspectos caravaggescos, confirmando suas teorias sobre a viagem do pintor à Itália quando jovem. Além disso o quadro tinha um quê "art déco": o falsário vê com os olhos do seu tempo e o público também. O estilo "art déco" moldava então os olhares.
Mas é a um outro caso de falsos que me referir. Não exatamente de falsários ou, pelo menos, não de falsários profissionais.
É uma história que teve grande repercussão no final dos anos de 1980, mas hoje está um pouco esquecida.
É uma história que teve grande repercussão no final dos anos de 1980, mas hoje está um pouco esquecida.
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Amedeo Modigliani - Cabeça - circa 1910 - 12 |
Tudo começa com um depoimento de Bruno Miniati, grande fotógrafo e amigo de Modigliani, ou Dedo, no apelido que o pintor tinha entre os amigos. Ele conta um episódio ocorrido em 1909 aproximadamente :
"A certa altura, de um embrulho de jornal, Dedo tirou uma cabeça de nariz comprido esculpida na pedra. Ele mostrou para nós com o ar de alguém que mostra uma obra-prima. E esperou pela nossa opinião. Não me lembro quem estava exatamente lá. [...] Muitos anos se passaram. Nós éramos vários, seis ou sete, a turma habitual. E todos começaram a rir. Nós tirávamos sarro, pobre Dedo, por causa dessa cabeça. E Dedo, sem dizer uma palavra, levantou-a acima dos ombros e atirou-a na água. Sentimos muito, mas estávamos todos convencidos de que, como escultor, Dedo valeria menos do que como pintor. Aquela cabeça parecia um aborto genuíno. Hoje, que conhecemos a escultura moderna, eu entendo o nosso erro. "
Isso se passou na cidade portuária de Livorno, na Itália, e a água era a do Fosso Reale.
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Livorno - Fosso Reale |
1984, centenário do nascimento de Modigliani e grande exposição organizada pelo Museo Progressivo d'Arte Contemporanea da cidade.
A conservadora do museu, Vera Durbè, quer descobrir a escultura. Vera Durbè é um personagem forte: resistente contra o fascismo durante a guerra, militante do partido comunista, partido que tinha grande projeção na Itália da época, irmã de um formidável historiador da arte, Dario Durbè. Ele foi grande especialista do século 19 (cujos escritos foram essenciais para minha formação) e diretor da Galleria Nazionale d'Arte Moderna e Contemporanea de Roma, a mais importante da Itália. Muito forte, Vera Durbè fora vítima de um acidente um ano antes e perdera uma perna, mas não a energia.
Vera Durbè faz a municipalidade dragar o fosso - que já havia sido limpo várias vezes depois da segunda guerra mundial em busca de artefatos perigosos. Vera Durbé está mesmo convencida de saber onde foi, exatamente, que Modigliani jogou sua escultura. No dia 17 de julho, os trabalhos começam.

Tudo isso, naturalmente, cria um enorme buzz midiático. Pietro Luridiana, então estudante em engenharia, conta: "continuavam a tirar de dentro do fosso objetos de todos os tipos, bicicletas, carrinhos de mão, pneus e então as pessoas que estavam olhando começavam a gritar para qualquer achado. Quando saía uma bicicleta, e todos gritavam: eeeh !, pescaram a bicicleta de Modigliani! Um pneu, e todos: eeeh !, o pneu de Modigliani! uma scooter. e todos riam: eeeh !, a scooter de Modigliani!, o que quer que tirassem era de Modigliani!"

Saía de tudo, menos a escultura.

Mas, na manhã do dia 24 de agosto, surge da lama uma cabeça esculpida. A multidão delira.

Vera Durbè tem um mal-estar. Logo se recupera, mas a alegria não termina aí. À tarde, sai das águas uma segunda cabeça!
Jornalistas do mundo inteiro vão a Livorno. Perguntada quando chegariam os resultados das análises, Vera Durbè respondeu: "Mas vocês não vêm que são elas! As análises químicas são apenas um elemento a mais. Basta saber olhar para compreender, e quem tem olhos para olhar, que olhe!"
Cesare Brandi, ilustre professor da Sapienza de Roma declara; "São de Modigliani. Têm uma luz interior, como uma pequena lamparina. Naquelas duas pedras grosseiras está o anúncio, está a presença."
Carlo Raghiante, outro nome ilustríssimo: "Estas obras, além de serem comoventes, inclusive por seu aparecimento súbito, são fundamentais para Modigliani e para a escultura moderna."
Poucos ousaram discordar. Entre eles, um nome maior; Federico Zeri, que assinalou o nível tão baixo das esculturas que nem valeriam qualquer adjetivo qualificador.
Mas Zeri era conservador. Os outros, sobretudo Argan, eram de esquerda. Os olhos também são condicionados pela solidariedade ideológica. Tanto de um lado como do outro.
As cabeças ficaram rapidamente prontas para serem expostas. Um catálogo, escrito por Dario Durbè, foi impresso em 18 dias!
Jornalistas do mundo inteiro vão a Livorno. Perguntada quando chegariam os resultados das análises, Vera Durbè respondeu: "Mas vocês não vêm que são elas! As análises químicas são apenas um elemento a mais. Basta saber olhar para compreender, e quem tem olhos para olhar, que olhe!"
Cesare Brandi, ilustre professor da Sapienza de Roma declara; "São de Modigliani. Têm uma luz interior, como uma pequena lamparina. Naquelas duas pedras grosseiras está o anúncio, está a presença."
Carlo Raghiante, outro nome ilustríssimo: "Estas obras, além de serem comoventes, inclusive por seu aparecimento súbito, são fundamentais para Modigliani e para a escultura moderna."
Poucos ousaram discordar. Entre eles, um nome maior; Federico Zeri, que assinalou o nível tão baixo das esculturas que nem valeriam qualquer adjetivo qualificador.
Mas Zeri era conservador. Os outros, sobretudo Argan, eram de esquerda. Os olhos também são condicionados pela solidariedade ideológica. Tanto de um lado como do outro.
As cabeças ficaram rapidamente prontas para serem expostas. Um catálogo, escrito por Dario Durbè, foi impresso em 18 dias!

Mas, as coisas não param aí. Dia 9 de agosto surge outra cabeça! Foram enumeradas Modì 1, 2 e 3, segundo a ordem de descoberta.
O fato tomou proporções enormes. Foi então que quatro jovens decidiram revelar terem sido os autores da Modì 2, numa farsa no estilo das beffe florentinas, que existiam desde o renascimento. Os protestos e a incredulidade foram gerais.
Acrescentando ao sensacionalismo da história, um episódio trágico: a filha de Modigliani, Jeanne Modigliani, preparando-se para vir de Nice, onde morava, para Livorno e examinar as esculturas, tropeça num degrau, cai da escada e morre!
Os especialistas não se dão por convencidos, e Vera Durbè desafia os jovens a fazer outra cabeça. Arma-se um programa internacional de televisão em que os críticos acusadores do falso estão presentes, porque os outros desertaram. Na frente de todos, os garotos fabricam mais uma cabeça, com uma talhadeira Black & Decker, que haviam usado na Modi 2.
Uma das consequências paralelas dessa farsa foi a publicidade realizada depois para a talhadeira:
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"É fácil ser bom com uma Black & Decker" |
Um padeiro cria seu pão a la Modigliani

Os autores da farsa:

Mas, e as outras duas cabeças, de quem seriam?
Surge um outro personagem, Angelo Froglia, pintor, então com 29 anos. Froglia é um intelectual, outsider. Convoca uma coletiva de imprensa no escritório de seu advogado. E declara ter feito os falsos por razões artísticas e políticas. «Eu me esforcei para trabalhar neste tríplice caminho que é o que define o sistema de arte: o crítico de arte que "lança" o trabalho do artista, o motiva e identifica suas razões teóricas. O "mercado", que articula a relação entre oferta e demanda e gerencia através da mídia especializada a imagem do próprio artista e, finalmente, o artista, o produtor do trabalho [...] o que eu queria discutir era o fluxo comunicação rápida, a maneira pela qual a obra de arte é localizada e reconhecida em nosso período histórico »

Froglia concebera seu gesto como uma performance: criar as cabeças, jogá-las no fosso e esperar, contando com o acaso. A recuperação e celebração das obras pelos peritos completava o processo artístico. Acrescente-se que Froglia deixou traços (por exemplo, uma das pedras vinha de um estacionamento e cheirava gasolina e óleo) que poderiam evidenciar o falso: a denúncia do sistema artístico ficava assim mais completa.
Fim da história:
Os rapazes de Modì 2 continuaram suas vidas.
Froglia morreu com 42.
Vera Durbè e Dario Durbè foram demitidos, uma dos museus de Livorno, outro da Galleria Nazionale de Roma.
Um grupo de estudantes universitários que havia recebido péssimas notas de professores envolvidos no caso por terem se deixado engambelar e declararam as cabeças verdadeiras, entraram com recurso e exigiram revisão das notas por incompetência dos mestres.
Giuliano Briganti, grande mestre, professor na Universidade de Roma que, desde o início havia recusado a autenticidade das esculturas, conclui assim uma declaração a respeito:
"Duas coisas em que sempre acreditei, e ainda acredito firmemente, são necessárias para praticar a profissão de historiador da arte. Antes de mais nada, parta sempre das obras, do conhecimento concreto das obras e destas retornem ao resto. Em segundo lugar, mantenha vivo o sentido de qualidade, de valor: um metro que tem sido muito negligenciado nos últimos anos, mas ao qual muitos hoje parecem retornar como um critério insubstituível de julgamento. Mas, para conhecer as obras, para reconhecer a qualidade, é necessária uma longa experiência com as próprias obras, uma profunda disposição mental. E também humildade. Aquela humildade que faltava aos que não queriam reconhecer a ausência de uma riqueza de experiência que os autorizassem a fazer julgamentos sobre as esculturas de Modigliani. "
Eu acrescentaria dois pontos.
Um, é que é preciso também humildade suficiente para admitir que qualquer um de nós pode ser enganado, incluindo nós mesmos.
O outro, é que o desejo transforma o olhar. É comum encontrarmos em trabalhos universitários pesquisadores que teimam em fazer as obras falarem coisas que elas não dizem, porque se convenceram de alguma ideia e encontram nelas, sinceramente, aquilo que não existe.
Para saber mais: Morandi G., La beffa di Modigliani, tra falsari veri e falsi, Firenze, Polistampa, 2004.
Sobre o mercado e suas encenações: veja neste mesmo blog.
Sobre o mercado e suas encenações: veja neste mesmo blog.
Que bom que existe este blog. Sempre apreciei os textos de Coli. São estimulantes como aquele café que tomamos de manhãzinha e nos mantém alerta o resto do dia.
ResponderExcluirOba! Muito obrigado!
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