O artista que navegou com Darwin

A Biblioteca Nacional da Austrália preserva um conjunto excepcional de 168 desenhos, em grande parte aquarelados e figurando paisagens. Os mais cativantes representam também pessoas e costumes. Foram feitos por um inglês de passagem pelo Atlântico, pelas Américas e Oceania. Seu nome é Augustus Earle.

Solitude, watching the horizon at sun set, in the hopes of seeing a vessel (autorretrato de Earle com seu cão Jemmy feito na ilha de Tristão da Cunha), 1824, aquarela, National Library of Australia

Earle nasceu em 1793, em Londres, onde estudou na Royal Academy. Nela, aos treze anos, expôs os primeiros trabalhos. Viajou por todos os continentes. É conhecido por ter acompanhado Charles Darwin no HMS Beagle, jornada abreviada, pois o artista precisou desembarcar em Montevidéu, em agosto de 1832, devido a problemas de saúde. São outros fatos, no entanto, que mais nos interessam.

Em 1820, Earle passou por Brasil, Chile e Peru. No mesmo ano, voltou ao Rio de Janeiro, ficando na cidade até 1824. Tomou um navio para Calcutá e uma tempestade o fez parar na ilha de Tristão da Cunha, no Atlântico Sul. Para esticar as pernas, Earle decidiu passear em terra com seu cão Jemmy. Entretido com a paisagem vulcânica, viu ao longe o navio partindo e deixando-o, junto com o cão, na ilha. Passou a fazer companhia às pouquíssimas pessoas que a habitavam, ficando nela por oito meses, até que outro navio o levasse a outras paragens.

A north easter, Tristan D'Acunha (outro autorretrato, sem o cão Jemmy), 1824, aquarela, National Library of Australia

Em referência aos anfitriões, em Tristão da Cunha, anotou:

Sinto um prazer infinito em ouvi-los no relato de suas diversas aventuras na fraseologia própria e peculiar dos marinheiros. É uma coisa desejável, a única de se adquirir viajando, poder acomodar-se à sociedade à qual a Providência pôde nos lançar em meio a eles.

Na ilha, além de continuar desenhando, Earle trabalhou como capelão e professor. Seus relatos, juntamente com os desenhos e sobretudo os retratos feitos nos anos seguintes, parecem denotar um caráter fora do comum.

A woman of New South Wales, c.1825, aquarela, National Library of Australia

A native of the Island of Tucopea [i.e. Tikopia], c.1827, aquarela, National Library of Australia

Amoko, a New Zealand girl, c.1827, aquarela, National Library of Australia

A New Zeand [i.e. Zealand] chief, c.1827, aquarela, National Library of Australia

Os retratos mais fascinantes de Earle foram feitos entre 1825 e 1827, na Oceania. São pequenos, medindo por volta de um palmo: aquarelas com fundos ocres e marrons, destacando direta e frontalmente os bustos, a maioria detendo-se no rosto, ou melhor, na área que circunscreve olhos e boca, centrando-se especialmente em torno ao nariz.

A New Zealand chief from Terra Naky [i.e. Taranaki], c.1827, aquarela, National Library of Australia

Em todos os retratos, mesmo nos mais estáticos e serenos, os olhos, nariz e boca formam uma espécie de tufão que magnetiza. O mais exemplar, nesse sentido, é o de um menino, A New Zealander.

A New Zealander, c.1827, aquarela, National Library of Australia

Diferentes elementos contribuem para o movimento centrífugo que parte das áreas mais externas, como a roupa e o fundo levemente revoltos (românticos, poderíamos dizer) até a face, passando pela moldura dos cabelos. Os amplos arcos dos fios a transformam em uma corola. Nos detalhes do septo nasal, ladeados pelos penetrantes olhos e sobrancelhas, em meio às tramas da tatuagem moko, encontra-se algo como um receptáculo de sedutora planta exótica.

 The bat of Brazil, 1822, aquarela, National Library of Australia

Semelhante jogo de tensões é visto em uma rara aquarela animalista de Earle, um morcego em tamanho real, isto é, com quase 70 cm de envergadura, sem as pontas das asas (elas sangram os limites do papel). Earle não pormenorizou o corpo de forma homogênea, como tampouco, via de regra, fazia nos retratos. Centrou-se na pequena cabeça, a parte mais escura da aquarela, não a mais aterradora (o que as grandes asas abertas talvez sejam), ainda assim inquietante, enquanto os membros do pobre animal estavam presos e, ele, esticado e aflito, provavelmente agitava-se de forma frenética.

Portrait of Bungaree, a native of New South Wales, with Fort Macquarie, Sydney Harbour, in background, c. 1826, óleo sobre tela, 68,5 x 50,5 cm, National Gallery of Australia

Alguns retratos feitos por Earle levam o nome do retratado. Um dos mais notáveis é o de Bungaree, nomeado pelos colonizadores “Rei do Povo de Broken Bay” para auxiliá-los em negociações com os nativos. Bungaree foi um dos mais famosos aborígines de seu tempo, hábil em transitar entre a cultura dos colonizadores e a sua própria, graças à inteligência em assimilar costumes estrangeiros, imitar expressões e ao mesmo tempo ganhar a estima dos conterrâneos. Tão logo uma embarcação forasteira aproximava-se de Sydney, Bungaree rumava em seu barco pesqueiro, cercado das duas esposas para dar boas vindas aos tripulantes. Nessas ocasiões, vestia um vistoso chapéu bicórnio e um reluzente casaco militar, mas esfarrapado, além de estar descalço. Mantinha considerável influência sobre os aborígines, participando de corroborees (cerimônias com música e dança) e rituais de batalha que, às vezes, viravam quebra-paus. Bungaree abandonava então os modos europeus, cobria-se de pigmentos rubros e empunhava armas tribais.

A imagem de Bungaree é baseada em esboços de Earle para um panorama, que circulou pela Grã Bretanha em 1829. O público inglês provavelmente esperava ver imagens selvagens, mas, ao invés disso, viram uma vila provinciana à beira-mar, cercada de azul, brisas refrescantes e sólidas edificações. É o que transparece também no retrato a óleo de Bungaree, incorporando ainda a idéia de um nativo pacífico, adaptado benevolamente à cultura colonizadora sem, no entanto, perder a modesta dignidade. É um retrato tocante e honroso, mostrando sem camuflagens, sem exageros e afetações o que há de pobre e rico nesse homem.

 King Bungaree, King of the Aborigines of New South Wales, 1826, litogravura, Mitchell Library, Sydney, Austrália

Há duas litogravuras oitocentistas reproduzindo o Bungaree de Earle. A primeira delas, ao que parece, é também o primeiro retrato litogravado em Nova Gales do Sul (onde havia apenas duas prensas litográficas, levadas em 1821 por Sir Thomas Brisbane, para imprimir cartas estelares do hemisfério sul, enfim não produzidas). Essa primeira (acima), aquarelada, foi feita no mesmo ano da pintura, 1826, reproduzindo-lhe o espírito. Embora as roupas estejam um pouco mais esfarrapadas, Bungaree continua nos acenando com o chapéu, sóbria e calmamente. Às suas costas, do mesmo modo, o porto de Sydney segue integrado à natureza e ao lugar, dando à personagem um sentido de domínio do espaço ao qual pertence.

Bungaree, a native chief of New South Wales, 1830, litogravura, National Library of Australia

Um tanto diferente é a lito de cima, produzida em 1830, em Londres, onde a figura de Bungaree é transformada: as roupas se desgastaram um pouquinho mais, assim como o sorriso é um tico abobalhado. A diferença maior, contudo, está no cenário: Bungaree é cercado por uma figura que o observa estranhamente e uma cesta com duas garrafas, sugerindo bebedeira e degradação. Além disso, ao invés do belo panorama do horizonte aberto da pintura, vemos um pequeno barranco e duas casas que o enclausuram, ou seja, não há sugestão de liberdade como nas versões anteriores, tampouco a dignidade, correspondendo mais à ideia que os ingleses provavelmente faziam da colônia e de seus nativos.

Depois da morte de Bungaree, em 1830, sua reputação como mímico, vagabundo e bêbado se consolidou. A sua participação voluntária na expedição de circunavegação da Austrália, em 1802, acompanhando um dos maiores cartógrafos do Pacífico Sul, Matthew Flinders, foi quase esquecida. Mas foi Bungaree quem o auxiliou no contato com os povos aborígenes, fato que recentemente vem sendo redimensionado e divulgado.

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