Solitude, watching the horizon at sun
set, in the hopes of seeing a vessel (autorretrato de Earle com seu cão Jemmy feito na
ilha de Tristão da Cunha), 1824, aquarela,
National Library of Australia
Earle nasceu em 1793, em Londres, onde estudou na
Royal Academy. Nela, aos treze anos, expôs os primeiros trabalhos. Viajou por todos os continentes. É conhecido por ter acompanhado
Charles Darwin no HMS Beagle, jornada abreviada, pois o artista precisou
desembarcar em Montevidéu, em agosto de 1832, devido a problemas de saúde. São
outros fatos, no entanto, que mais nos interessam.
Em 1820, Earle passou por Brasil, Chile e Peru. No mesmo
ano, voltou ao Rio de Janeiro, ficando na cidade até 1824. Tomou um navio para
Calcutá e uma tempestade o fez parar na ilha de Tristão da Cunha, no Atlântico
Sul. Para esticar as pernas, Earle decidiu passear em terra com seu cão Jemmy.
Entretido com a paisagem vulcânica, viu ao longe o navio partindo e deixando-o,
junto com o cão, na ilha. Passou a fazer companhia às pouquíssimas pessoas que
a habitavam, ficando nela por oito meses, até que outro navio o levasse a
outras paragens.
A north easter, Tristan D'Acunha (outro autorretrato, sem o cão
Jemmy), 1824, aquarela, National
Library of Australia
Em referência aos anfitriões, em Tristão da Cunha, anotou:
Sinto um prazer infinito em ouvi-los no relato de suas diversas
aventuras na fraseologia própria e peculiar dos marinheiros. É uma coisa
desejável, a única de se adquirir viajando, poder acomodar-se à sociedade à
qual a Providência pôde nos lançar em meio a eles.
Na ilha, além de continuar desenhando, Earle trabalhou como capelão e professor. Seus relatos, juntamente com os desenhos e sobretudo os retratos feitos nos anos seguintes, parecem
denotar um caráter fora do comum.
A
woman of New South Wales,
c.1825, aquarela, National Library of Australia
A
native of the Island of Tucopea [i.e. Tikopia], c.1827, aquarela, National Library of Australia
Amoko,
a New Zealand girl, c.1827, aquarela,
National Library of Australia
A
New Zeand [i.e. Zealand] chief, c.1827, aquarela, National Library of Australia
Os retratos mais fascinantes de Earle foram feitos entre
1825 e 1827, na Oceania. São pequenos, medindo por volta de um palmo: aquarelas
com fundos ocres e marrons, destacando direta e frontalmente os bustos, a
maioria detendo-se no rosto, ou melhor, na área que circunscreve olhos e boca,
centrando-se especialmente em torno ao nariz.
A New Zealand chief from Terra Naky [i.e.
Taranaki], c.1827, aquarela,
National Library of Australia
Em todos os retratos, mesmo nos mais estáticos e serenos, os
olhos, nariz e boca formam uma espécie de tufão que magnetiza. O mais exemplar,
nesse sentido, é o de um menino, A New Zealander.
A
New Zealander, c.1827,
aquarela, National Library of Australia
Diferentes elementos contribuem para o movimento centrífugo
que parte das áreas mais externas, como a roupa e o fundo levemente revoltos (românticos,
poderíamos dizer) até a face, passando pela moldura dos cabelos. Os amplos
arcos dos fios a transformam em uma corola. Nos detalhes do
septo nasal, ladeados pelos penetrantes olhos e sobrancelhas, em meio às tramas da
tatuagem moko, encontra-se algo como um receptáculo de sedutora
planta exótica.
Semelhante
jogo de tensões é visto em uma rara aquarela animalista de Earle, um morcego em
tamanho real, isto é, com quase 70
cm de envergadura, sem as pontas das asas (elas sangram
os limites do papel). Earle não pormenorizou o corpo de forma homogênea, como
tampouco, via de regra, fazia nos retratos. Centrou-se na pequena cabeça, a
parte mais escura da aquarela, não a mais aterradora (o que as grandes asas
abertas talvez sejam), ainda assim inquietante, enquanto os membros do pobre
animal estavam presos e, ele, esticado e aflito, provavelmente agitava-se de
forma frenética.
Portrait of Bungaree, a native of New
South Wales, with Fort Macquarie, Sydney Harbour, in background,
c. 1826, óleo sobre tela, 68,5 x 50,5 cm ,
National Gallery of Australia
Alguns retratos feitos por Earle levam o nome do retratado. Um
dos mais notáveis é o de Bungaree, nomeado pelos colonizadores “Rei do Povo de
Broken Bay” para auxiliá-los em negociações com os nativos. Bungaree foi um dos
mais famosos aborígines de seu tempo, hábil em transitar entre a cultura dos
colonizadores e a sua própria, graças à inteligência em assimilar costumes
estrangeiros, imitar expressões e ao mesmo tempo ganhar a estima dos conterrâneos. Tão logo uma embarcação forasteira aproximava-se de Sydney,
Bungaree rumava em seu barco pesqueiro, cercado das duas esposas para dar boas
vindas aos tripulantes. Nessas ocasiões, vestia um vistoso chapéu bicórnio e um
reluzente casaco militar, mas esfarrapado, além de estar descalço. Mantinha
considerável influência sobre os aborígines, participando de corroborees (cerimônias com música e
dança) e rituais de batalha que, às vezes, viravam quebra-paus. Bungaree abandonava então os modos europeus, cobria-se de pigmentos rubros
e empunhava armas tribais.
A imagem de Bungaree é baseada em esboços de Earle para um
panorama, que circulou pela Grã Bretanha em 1829. O público inglês
provavelmente esperava ver imagens selvagens, mas, ao invés disso, viram uma
vila provinciana à beira-mar, cercada de azul, brisas refrescantes e sólidas
edificações. É o que transparece também no retrato a óleo de Bungaree,
incorporando ainda a idéia de um nativo pacífico, adaptado benevolamente à
cultura colonizadora sem, no entanto, perder a modesta dignidade. É um retrato
tocante e honroso, mostrando sem camuflagens, sem exageros e afetações o que há
de pobre e rico nesse homem.
Há duas litogravuras oitocentistas reproduzindo o Bungaree de
Earle. A primeira delas, ao que parece, é também o primeiro retrato litogravado
em Nova Gales do Sul (onde havia apenas duas prensas litográficas, levadas em
1821 por Sir Thomas Brisbane, para imprimir cartas estelares do hemisfério sul,
enfim não produzidas). Essa primeira (acima), aquarelada, foi feita no mesmo
ano da pintura, 1826, reproduzindo-lhe o espírito. Embora as roupas estejam um
pouco mais esfarrapadas, Bungaree continua nos acenando com o chapéu, sóbria e calmamente.
Às suas costas, do mesmo modo, o porto de Sydney segue integrado à natureza e ao
lugar, dando à personagem um sentido de domínio do espaço ao qual pertence.
Bungaree,
a native chief of New South Wales, 1830, litogravura, National Library of Australia
Um tanto diferente é a lito de
cima, produzida em 1830, em Londres, onde a figura de Bungaree é transformada:
as roupas se desgastaram um pouquinho mais, assim como o sorriso é um tico
abobalhado. A diferença maior, contudo, está no cenário: Bungaree é
cercado por uma figura que o observa estranhamente e uma cesta com duas
garrafas, sugerindo bebedeira e degradação. Além disso, ao invés do belo
panorama do horizonte aberto da pintura, vemos um pequeno barranco e duas casas
que o enclausuram, ou seja, não há sugestão de liberdade como nas versões
anteriores, tampouco a dignidade, correspondendo mais à ideia que os ingleses
provavelmente faziam da colônia e de seus nativos.
Depois da morte de Bungaree, em 1830, sua reputação como mímico, vagabundo e bêbado se consolidou. A sua participação voluntária na expedição de circunavegação da Austrália, em 1802, acompanhando um dos maiores cartógrafos do Pacífico Sul, Matthew Flinders, foi quase esquecida. Mas foi Bungaree quem o auxiliou no contato com os povos aborígenes, fato que recentemente vem sendo redimensionado e divulgado.
Depois da morte de Bungaree, em 1830, sua reputação como mímico, vagabundo e bêbado se consolidou. A sua participação voluntária na expedição de circunavegação da Austrália, em 1802, acompanhando um dos maiores cartógrafos do Pacífico Sul, Matthew Flinders, foi quase esquecida. Mas foi Bungaree quem o auxiliou no contato com os povos aborígenes, fato que recentemente vem sendo redimensionado e divulgado.
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