Estou convencido que se há um filósofo a ser eleito como leitura obrigatória para os historiadores da arte, esse filósofo é Bergson. Não muito na moda hoje, talvez. Filósofo difícil, porque subverte os fundamentos mesmos do pensamento teórico e abstrato: ninguém, como ele, foi mais desconfiado dos conceitos. Bergson propõe um pensamento sem pensamento, mas com "captações". O tempo, diz ele, não pode ser pensado como sempre foi, ou seja, como uma sucessão de modos "estáveis". Isso é verdadeiro também para o movimento: a flecha de Aquiles, que Zenão transformou em paradoxo por deslocar-se em sucessões no espaço, é uma falácia, porque não há sucessão, mas fluxo.
A associação entre Bergson e Duchamp, que foram contemporâneos (Bergson mais velho, 1859 - 1941, Duchamp, 1887 - 1968), já foi estudada e estabelecida. Quero sugerir, aqui, alguns pontos suplementares.
O célebre Nu descendo as escadas, que Duchamp pintou em 1912, ligando cubismo e futurismo em modo bem humorado (o pontilhado indicando o lugar que o traseiro da moça ocupou no espaço) sublinha o paradoxo das fotos de Muybridge (Nu descendo as escadas, 1887) e Marey, que decompõem o movimento em instantes.
Muybridge demonstra, pela evidência visual, a crítica bergsoniana a Zenão. Os instantes isolados da descida não formam a descida, assim como os fotogramas não formam um filme. Marey, à primeira vista, está mais perto de Bergson, por exemplo, no seu Homem segmento, corrida de um domador de leões, de 1886:
A afinidade maior entre Bergson e Marey se dá pela sugestão de fluxo, já que o fotógrafo não compartimenta o modelo em retângulos isolados como faz Muybridge. Uma posição se junta à outra. Mas, ainda, a fluência da foto de Marey é estática. Além disso, cada um dos instantes do avançar constitui um novo ser, e não o mesmo ser que avança Talvez seja possível dizer que a foto de Marey está, para a compreensão do movimento tal como o concebe Bergson, assim como a linguagem empregada por Bergson está para o cerne de sua filosofia. Porque a linguagem mais fluida é, ainda, conceitual. A palavra sucede à palavra, a frase à frase. Precisamos ultrapassar linguagem e conceito para chegar ao entendimento da revolução bergsoniana.
O que está, no quadro de Duchamp e nas fotografias de Marey e Muibridge, é a substituição do tempo pelo espaço. Bergson adverte: a filosofia falhou em abarcar o tempo, e o substituiu pelo espaço. Na introdução de seu livro La pensée et le mouvant, assinala " A duração se exprime sempre pela extensão. As formas que designam o tempo são emprestadas à linguagem do espaço. Quando evocamos o tempo, é o espaço que responde à chamada".
Isso porque o espaço se acomoda no conceito. Ora, é a consciência da duração que leva a intuição a tornar-se método filosófico. O tempo escapa à racionalidade conceitual; quando ele se intelectualiza, torna-se espaço, ou seja, torna-se um fantasma estático da duração.
Concluo com palavras de Bergson, não sem antes dizer que meu objetivo, aqui, era mostrar como os ready-made de Duchamp possuem uma implícita formulação bergsoniana. Mas demorei demais na questão da temporalidade e deixo minha primeira intenção para outra vez.
Concluo então com a seguinte passagem de Bergson:
"Nenhuma solução poderá se deduzir geometricamente de uma outra. Nenhuma verdade importante poderá ser obtida por uma verdade já adquirida. Será necessário renunciar a manter virtualmente num princípio a ciência nova.
A intuição da qual falamos refere-se, portanto, antes de tudo, à duração interior. Ela apreende uma sucessão que não é justaposição, um crescimento pelo interior, o prolongamento ininterrupto do passado num presente que avança sobre o futuro. É a visão direta do espírito pelo espírito".
Fantástico post! Lembrei das interpretações do prof. Bento Prado Junior a Bergson, que não só se antecipam às de Deleuze, como já se observou, mas a meu ver as superam e de longe.
ResponderExcluirBento, o melhor professor que já tive, foi o último grande bergsoniano destas plagas. Hoje, Bergson está empoeirando nas prateleiras brasileiras.
ExcluirReflexão provocante. Vou além: não seria a arte o método por excelência para sondar o sentido misterioso da flecha de Aquiles? Não seria ela a única capaz de oferecer uma "visão do espírito pelo espírito", que permite captar e intuir a duração interior, o movimento e o fluxo, escapando à racionalidade conceitual?
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