O artista que navegou com Darwin, parte 2


Assim Augustus Earle desenhou o deslumbramento diante de uma paisagem natural:

Augustus Earle, View from the summit of the Cacavada [i.e. Corcovado] Mountains, near Rio de Janeiro, c.1822, aquarela, National Library of Australia


Comparemos com uma representação feita por Caspar David Friedrich, que pintou a si mesmo como conquistador, no alto de uma montanha.

Caspar David Friedrich, O viandante sobre o mar de bruma, c.1818, óleo sobre tela, Kunsthalle, Hamburgo


Quanta diferença entre uma e outra! Em Earle, não há solenidade. Diferentemente disso, há ironia e humor. Mas ambas conservam energias como se fossem explosivos. E se em Friedrich elas estão gelidamente contidas, em Earle vislumbra-se a fagulha que está prestes a detonar a bomba.

As obras de Earle são cheias de energia (reproduções de algumas delas podem ser vistas em outro post). Observando-as, é possível apreender um procedimento: a união de opostos, algo como uma espécie de yin yang. Congregam-se, desse modo, receio e destemor, beleza e brutalidade, relaxamento e tensão, calma e tempestade.

Augustus Earle, Negroes fighting. Brazils, c.1822, aquarela, National Library of Australia 


Negroes fighting. Brazils é uma pequena aquarela na qual dois homens lutam. Um guarda, desajeitado, apressa-se em detê-los. Um grupo se diverte. A aquarela, provavelmente de 1822, de quando Earle vivia no Brasil a mais de um ano (1), figura um momento que não entrega bem o que se passa. Temos indícios do que pode ter acontecido. O homem sem camisa segura o que parece ser um chapéu. Talvez o tenha tirado do colega por brincadeira e o outro, irritado, partira à desforra, daí também os semblantes pouco amistosos. Em contraste, as mulheres e crianças, incluindo o bebê, estão sorridentes. Do que riem? Da luta (ou brincadeira) ou do guarda, talvez um estrangeiro (como Earle) esbaforido e enroscado na cerca, com a expressão completamente diversa das dos demais personagens? É difícil precisar. O que se pode assegurar é o encantamento do artista, que captou e inventou sentimentos, passando-os com vivacidade para o papel.

 Géricault, Boxeurs, 1818, litogravura

Delacroix, Le Combat du Giaour et du Pacha, 1835, óleo sobre tela, Petit Palais, Paris

Para comparação, tomemos Boxeurs, de Géricault, e Le Combat du Giaour et du Pacha, de Delacroix. As três obras retratam costumes exóticos (o pugilismo inglês também era um esporte selvagem para um francês da época), aproximando artistas tão diversos, porém, “civilizados” diante dos retratados.
Augustus Earle, muito diferente de Géricault e Delacroix, optou por outro modo de vida. Viajar estava em seu sangue tanto quanto fazer arte. As duas atividades acabaram se entrelaçando. Earle é tido como o primeiro artista a correr os cinco continentes. O feito, porém, é menor diante da obra, que sobreviveu um pouco por acaso. Após a sua morte, um grande conjunto de aquarelas parou nas mãos de um meio-irmão, depois a um meio-neto e, em maio de 1926, na Sotheby de Londres. Em seguida, foi comprada pelo marchand e colecionador neozelandês Sir Rex Nan Kivell, passando pouco a pouco à Biblioteca Nacional da Austrália, entre as décadas de 1940 e 1970. Hoje, digitalizada, é ela, a sua obra, que corre pelo mundo.

(Clique aqui para acessar desenhos e aqui para ler o diário do artista)

Nota
(1) Depois de uma breve estadia no Peru, Earle desembarcou em janeiro de 1821 no Rio de Janeiro, permanecendo no Brasil até fevereiro de 1824. Nesses anos, foi um artista independente, sem vínculos oficiais. Mary Graham utilizou obras de Earle como ilustrações em seu Journal of a Voyage to Brazil, and Residence there during the years 1821, 1822, 1823 (Londres, 1824), único livro com reproduções de obras brasileiras de Earle.

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