Don’t
touch me
Touch
can kill
Há 22
anos, ao me despedir de um colega, o abracei. Uma amizade recente e sem muitos contatos.
Para minha surpresa e encabulação o rapaz se transformou: sua pele enrijecendo
feito mármore e seus olhos transformando-se em vidro, olhar vazio e sem
destino. É fato, ele não sabia reagir ao toque. Percebi imediatamente e para
retratar-me dei um tapinha em suas costas, o que piorou muito a situação já estranha. As outras pessoas, por certo muito mais polidas, contentavam-se em
dizer um frígido tchau acenado com a mão. Não aprendi nada deste fato pois, quatro
dias mais tarde, uma outra colega e a mesma situação. Um beijo na bochecha levemente
dourada entre as sardas da garota e pronto: olhar de consternação; o seu corpo
também imóvel me dizia que havia ultrapassado meus limites. As bases culturais
na criação certamente mudam suas interações em relação ao toque humano.
O contato! Tão caro e necessário aos seres, em especial aos mamíferos, como nós. Volta ao
velho tema do corpo humano e de sua interação. Ashley Montagu, em seu livro Tocar: o significado humano da pele,
mostra a força ontogenética do contato e sua importância da formação dos outros
sentidos. É ao menos apaziguador essa linha de raciocínio em um mundo no qual o
contato passa apenas mediado pelo corpo. Mesmo caduco nos dias atuais, perdura
como pode.
Norval
Baitello Junior, teórico da comunicação, das imagens e da cultura, percebe esse
ponto: “A falta é sentimento corporal. Quando nos falta alguma coisa, é nosso
corpo o primeiro a registrar essa falta. E a falta de pessoas que se ausentam
para sempre ou por um tempo é justamente aquele que mais grita dentro de nós.
Se o corpo pede corpo e não é atendido, criam-se mecanismos para que ele se
contente com o que recorda o preenchimento de sua carência. E, às vezes, ele se
contenta com imagens [...]”
A relação
da imagem – corpo – vazio foi bem explorada, tanto por Norval, como para
Belting, Debray ou Didi-Huberman e mantém-se no centro de interesses daqueles
que estudam corpo e também a sua representação. Matéria complexa e rica diferente,
claro, do corpo pulsante, mas seus pontos de contato sempre se fazem presentes.
Para
este tema o filme de estreia de Frank Perry, David and Lisa (1962) apresenta-nos personagens sofredores de
patologias diversas. Lisa tem duas personalidades, a primeira fala
necessariamente por rimas, não consegue de outra forma; a outra não fala,
concentra-se no que precisa comunicar por meio da escrita. David, por sua vez,
não suporta o toque, tem a convicção de que o contato pode matá-lo. “Don’t touch me! Touch can kill”, diz
assutado e temeroso. No YouTube há uma edição concentrando algumas cenas
de sua patologia, vamos ver:
A fuga
ou impossibilidade do toque faz parte da cultura. Basta pensar na apressada
escolha mal feita por Midas. Ao restituir Sileno, depois de festejar “alegremente
durante dez dias acrescidos de outras tantas noites”, na passagem descrita por
Ovídio, Midas escolhe como recompensa a riqueza ilimitada pelo poder do toque. “Faz
que tudo quanto eu venha a tocar com o meu corpo se converta em fulvo ouro”.
Pronto, nada escaparia: primeiro uma folha, depois uma pedra. Podemos imaginar
a felicidade gananciosa do olhar. Contudo, não há fuga ou respiro, a comida e mesmo a água ao encontrar seu corpo, obedece a sina. Ao seu mínimo contato, tudo se converte em ouro. Midas estava encurralado. O toque vira maldição, o horror.
Quantos
mais toques: o beijo mortal da mulher fatal, o toque improvável e milagroso nas
relíquias etc. ou a proteção a um possível toque miserável tal qual de um Lázaro, ressuscitado por Cristo,
gera medo e ninguém em sã consciência gostaria de tocá-lo. Lázaro! Este
primeiro Zumbi da história, como indica François Angelier em Politques des Zombies: l’amérique selon
Geroge A. Romero.
No
entanto, é louvável relembrar um célebre quadro que inverte a maldição do toque. De
Antoine-Jean Gros, Bonaparte visitant les
pestiférés de Jaffa, 11 mars 1799, 1804. Ora, quanta mudança na lógica da
pintura de história e este quadro a atesta. A grande pintura, cume da carreira
dos artistas, se presta também e de maneira poderosa aos anseios de eventos
contemporâneos. Mas, o alvo é outro. A composição de Gros faz eco, de alguma
forma, aos preceitos de David. O jogo de colunas e arcos que vemos atrás
dos personagens em primeiro plano poderiam ser postos lado a lado dos
famigerados arcos em Le serment des
horaces do mestre. Aqui ogivados, abrem a vista e no alto flameja a
bandeira tricolor, ao lado direto o minarete da mesquita.
![]() |
Antoine-Jean Gros. Bonaparte visitant les pestiférés de Jaffa. 1804 |
O
jogo acontece no primeiro plano. Bonaparte ocupa o centro da obra. Estende seu braço
e toca, sem medo ou receio o pestilento com seus dedos posto em sua frente.
Atrás do grande General, um soldado se protege com um tecido, pois não é possível respirar
aquele mesmo ar; um outro, próximo a Bonaparte, tenta em vão alertá-lo dos
perigos. O General na tela de Gros converte-se em uma espécie de deus, capaz de
não apenas ter a coragem para se aproximar dos doentes, mas que possui um toque
da cura. Ele retira uma das luvas, aquela cuja mão encontra o enfermo na outra
extremidade. Diante do medo e receio dos outros soldados, o general está acima,
Bonaparte nesta lógica está além do humano, é um semideus.
Muito bom! Acabei de ver a 2a temporada de The sinner e "toca" de leve no assunto
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ExcluirParabéns por esse grande texto! Só acrescento um filme perverso sobre o toque: The Unknown, de Tod Browning com Lon Chaney. https://vimeo.com/170412984
ResponderExcluir!!!! Grande filme.
ExcluirThe Unknown, do Tod Browning. Que filme, que atuação brilhane do Lon Chaney!
ExcluirExcelente!
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