Henri Focillon - A pintura no século XIX - O idealismo e a revolução - I

 Henri Focillon - A pintura no século XIX

Primeira Parte

O retorno ao antigo e o início do romantismo

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Capítulo Primeiro

 O idealismo e a revolução - I


Tradução e ilustração - Jorge Coli


No final do século XVIII, a píntura francesa parece desviar bruscamente. Para toda uma geração, de agora em diante ela é feita de ideal, renúncias, virtudes à maneira da antiguidade. Roma e Grécia invadem as artes. Esse movimento, nós lhe damos de costume David como autor. Mas ele é mais antigo que esse mestre e mais rico de nuanças que sua arte. Corresponde primeiro a uma inquietação profunda e natural da sensibilidade francesa.

A facilidade da vida, o brilho da cultura, o requinte dos costumes provocam por vezes por reação um retorno à severidade. Essa característica é perceptível desde a metade do século. O público e a crítica solicitam então uma arte mais simples e mais grave, de uma inspiração mais elevada. Restaura-se o culto dos heróis. Desvia-se das seduções e das suculências de uma pintura encantadora para buscar nos exemplos do passado uma doutrina mais viril e que eleva o homem. Levanta-se com vigor, com acrimônia, contra a pintura de gênero, contra a ilustração alegórica ou anedótica dos costumes, opondo-lhes a dignidade da pintura de história e dos temas heróicos. 



Em 1747, as Reflexões de La Font de Saint-Yenne contém, em germe, os princípios de uma estética nova. O abade Leblanc lembra aos jovens artistas a virtude dos mestres.

Maurice Quentin de la Tour - Retrato do abade Le Blanc (Salão de 1747),

Caylus lhes recomenda de se inspirar em Homero e Virgílio, estudar como filósofos o coração humano, mostrar-nos apenas ações nobres.

Alexander Roslin - O conde de Caylus - 1752/3 circa



Diderot faz a apologia inflamada da grande maneira. O pintor deve se colocar acima da realidade quotidiana, do gosto que está na moda e das virtuosidades fáceis, apreender o homem, como o faz o dramaturgo, em seus impulsos sublimes, em sua exaltação, em seu paroxismo. É preciso desprezar as pessoas "de gostinhos requintados que temem as sensações fortes demais".


Jean-Antoine Houdon - Denis Diderot - 1773


É preciso que ele tenha em mente o exemplo e a autoridade dos grandes pintores, Rafael, Domenichino, os Carracci, Rubens, Rembrandt, Poussin, Le Sueur. "Oh Poussin! Oh Le Sueur! onde está o Testamento de Eudâmidas?...

Nicolas Poussin - O testamento de Eudâmidas - circa 1653

 
Essa necessidade profunda de regenerar que sente a elite pensante, de retemperar a vida moral em todos os domínios, de nutri-la de energicas paixões, explica, na arte daquele tempo o esforço ascético, por vezes arduamente tenso, mas de uma significação histórica comovente. O fervor do neo-classicismo buscou no renascimento erudito e na anticomania suas confirmações estéticas, mas ultrapassa a arqueologia, pertence à história moral da naçao. Da mesma maneira, a voga dos temas morais e sentimentais que elevam o tom da vida familiar, pintando os fastos da da sensibilidade e da 

Jean Baptiste Greuze - O filho punido - 1778

virtude, da mesma maneira, a voga dos temas nacionais que ressuscitam as grandezas passadas da França. Assim, pode-se compreender o sentido e o alcance do sucesso que saudou os inícios e que seguiu toda carreira de Vien. O Eremita adormecido, exposto triunfalmente sob a rotunda do Panteão 

Joseph Marie Vien, o velho - O eremita adormecido - 1750

de Agripa, em seguida em Paris, depois de ter sido aclamado em Marselha, em Montpellier, em Lyon, pareceu, por efeito de contraste, uma obra abrupta, larga, cheia de uma poesia áspera. Em 1754, Caylus, entregue às suas pesquisas sobre a técnica dos gregos e dos romanos e sobre a pintura à encáustica, fez executar pelo jovem artista, segundo esse processo, uma pequena Minerva com capacete, seguida de cinco outros painéis desse mesmo gênero, expostos no salão de 1755.¹ A reação não é apenas de inspiração, 

Joseph Marie Vien - A mercadora de Amores - 1763


e de idéias, ela é técnica, ela tenta banir da pintura todo sabor e toda volúpia do métier. Do problema da encáustica, sem futuro, ela passa à admiração das pinturas pompeianas, e logo proporá como modelo à pintura, a estatuária, a continuidade lisa do mármore, sua fria serenidade.

Essa aspiração idealista encontrou exemplos e modelos num fato de alta curiosidade intelectual, o renascimento arqueológico, e um alimento, uma febre a mais num fato de alta tensão social e moral, a Revolução. O renascimento arqueológico, que é, talvez, a última grande palpitação do gênio clássico, não deve ser interpretada como um esforço artificial de eruditos, como um seco ardor de homens de gabinete. O "milagre" de Herculano reencontrado, do qual não se poderia exagerar o alcance, nada seria se o espírito do século não se tivesse apoderado dele. O mais original e o maior dos italianos dessa época, Piranesi, que consagrou sua vida ao estudo e à difusão dos monumentos da antiga Roma, que espalhou em toda a Europa a imagem poderosa de uma antiguidade em branco e preto, majestosa em sua derrocada, nunca, por assim dizer,  se preocupou com ela. 


Giovanni Battista Piranesi. Le anchità romane, 1750-3. Tomo III [segundo frontispício].

Se, de todos os lados da Europa a curiosidade da elite se dirige, de modo apaixonado a todos os territórios em que a civillização mediterrânea deixou vestígios e exemplos, é porque sente, em si mesma, uma necessidade de grandeza e como uma fatiga de seus próprios encantos. Quanto, em poucos anos, o tom mudou e, com o tom, os hábitos intelectuais, é o que mostra a comparação entre as cartas do président des Brosses com as cartas do abade Brthelémy. Um parte para a Itália em 1739 e o outro em 1755. Com seu espírito, o presidente não é um homem frívolo; ele vai, em companhia de Sainte-Palaye, buscar material para o seu Salústio. Mas ele é solicitado, primeiro, pela vida. Ama a Itália antiga, mas adora a Itália moderna, que o diverte e onde ele se diverte. Para a mais bela antiguidade, ele não renunciará ao prazer de ser alegre, de soltar a rédea à sua jovialidade borguinhã e parlamentar. O outro, o abade, não é um gênio tenso: é um homem amável e de boa companhia, mas é ao mesmo tempo um apaixonado, um "sensível", que a antiguidade possui por inteiro. Ele fala da antiguidade com um fervor que não é apenas humanismo, mas humanidade. Quando chega no Capitólio, quando penetra nessa profusão de grandezas, ele sente, com uma força e uma tristeza admiráveis tudo o que separa de nossas coleções, ainda pequenas, dessa profusão de coisas vastas, solenes, monumentais, de várias civilizações e de um imsenso império. Sua erudição, seu gosto, sua própria paixão são à francesa. Tem o sentido das ideias, o dom de apreender os conjuntos: percebe-se bem pelo seu Anacharsis, por demais esquecido, que, num gênero falso, não é, por isso, menos uma obra-prima, o grande e belo espelho romanesco do renascimento arqueológico. 




Em torno dele, quantos excelentes franceses! - Mariette, notável não pela doutrina, mas pela vivacidade e inteligência do gosto; Cochin, pela chama, pela flexibilidade; Caylus, pela energia de uma paixão arqueológica que dá amplidão e nobreza a um caráter um pouco seco... O erro deles, é de ter deixado a estética nova se fazer sem eles, se formular de um modo exclusivo e dogmático. Ninguém estava mais qualificado que esses franceses do século XVIII para bem falar da arte grega, para conservar sua vida e seu encanto, Tinham os conhecimentos: foi em 1758 que David Le Roy publicou suas Ruines des plus beaux monuments de la Grèce.

Vista do Partenão de Atenas - Ilustração para Ruines des plus beaux monuments de la Grèce, de David Le Roy - 1758


Tinham a medida. À distância de um solo saturado de maravilhas romanas ou greco-romanas, preservadas por sua finura e pelo gênio artístico do exclusivismo romanizante, do patriotismo arqueológico de um Piranese, eram os mais capazes de dizer com precisão e sensibilidade as qualidades do aticismo ou do alexandrinismo, de enriquecer os próprios tesouros... Foi o que fez Chénier, uma geração mais tarde. Mas a estética antiquisante foi formulada na própria Roma, e por um sábio alemão.

Winckelmann tinha o que era preciso para formulá-la com força e sem mistura. Não se embaraçava com conhecimentos técnicos sobre a arte de seu tempo, nem com lembranças e hábitos formados pelo gosto voltados para o passado de uma escola ilustre. 

Antonio Bosa - Cenotáfio dedicado a Winckelmann - Trieste - 1833

Não tinha, por trás dele, nem Jean Goujon, nem Poussin. 

Jean Goujon - Tribuna das cariátides - Louvre - 1550 circa


Espírito honesto e lúcido, de vigor raro, ele saia dessa Alemanha toda bruta e muito erudita, de um meio seco e teórico. Viveu e compreendeu a arte antiga, mas a isolou, a alçou nas nuvens, divinizou-a, na fria luz de um museu. Longe de ignorar os atletas e os sábios, via apenas eles. Esse familiar dos pensamentos mais altos, foi incrivelmente fechado aos instintos e às vivas paixões da arte. Era dotado dessa genial estreiteza que assegura o sucesso. Em 1756, suas Reflexões sobre a imitação dos gregos em pintura e em escultura eram apresentadas por Fréron aos leitores do Journal étranger. O dogma da imitação da estatuária pelos pintores começa a se espalhar entre nós, e alhures.











¹ Não foi possível encontrar, pelo menos até agora, nenhuma Minerva com capacete, nem outra obra do salon de 1755. O catálogo do salon de 1755 faz referências a essas obras: "Les six Tableaux suivans sont peints en cire, selon la découverte de M. le Comte de Caylus, nommée Peinture à l’Encaustique [...] / Un Tableau peint sur bois, haut de 2 pieds & demi, sur 2 pieds de large, représentant une Tête de Minerve, d’après l’antique."



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